Picapau e o Bombeirinho

Por Cris Ramalho

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– Mas por que eu?

– Meu bem, você é a única que cabe nessa roupa. E adora crianças.

Clara olhava desolada para a fantasia de Picapau sobre a cadeira. O inferno era a cabeça – um imenso cabeção de feltro, pesado, quente como o diabo, com penas vermelhas, medonho de feio. Os olhos eram também de feltro, grudados na cara. Para enxergar lá de dentro Clara tinha de olhar pelo bico. O restante do figurino não colaborava: um macacãozinho bem curto, azulão, com rabo de penas, meia calça e sapatilhas no mesmo tom.

Essa história aconteceu há um tempo. No tempo em que existia o videocassete e, consequentemente, as videolocadoras. O dono de uma delas achou que seria legal ter o Picapau na porta da loja, acenando para a garotada. Sobrou para a Clara: pequenininha, tipo mignon, ela era de fato a única adulta que entraria naquela fantasia. Também era verdade que adorava crianças. E foi pensando em ganhar um troco para ajudar a pagar a faculdade de Pedagogia que topou pagar esse mico. Três horas em pé, num calor de rachar a moringa, sustentando o peso do mundo no cabeção de feltro e dando tchauzinho.

O lado bom era o anonimato da coisa: ninguém a reconheceria por baixo do bico. Foi o que ela pensou enquanto acenava com a luva azul. A maioria das crianças nem respondia. Uns puxavam as penas da cauda. Os menorzinhos choravam alto, mães dizendo: “Não, querido, é só um pássaro bobo”.

A única que prestou atenção apontou para uma mancha na barriga do boneco, e berrou: — Mãeeee, a barriga do Picapau tá suja!

Firme, Clara. Já houve dias piores: aquele aniversário que a mãe de três meninos largou o menorzinho no seu colo, a fralda imunda, e sobrou para você trocar o cagão. E a viagem de Kombi até Campinas? Você e os rapazes vestidos de Jaspion e Changeman prontos para animar a festa num condomínio. A Kombi quebrou na estrada e vocês começaram a empurrá-la, na chuva, enquanto os caminhoneiros que passavam, gritavam, rindo: “Aí, Jaspion, força! Vai nessa, Changeman!”. Esse Picapau tava moleza.

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Mico: um dia vai chegar a sua vez de pagar

Assim meditando sobre as escolhas da vida, Clara aproveitou um momento de pouco movimento e sentou-se na muretinha em frente à loja. Cruzou as pernas azuis. Passou uma caminhonete de onde um sujeito suado, camiseta regata, anunciou em altos brados: “Ééé, Picapau, eu te conheço. Você é gostosinha”.

Pelo amor de Deus! Quanto tempo faltava para acabar aquela tortura? Que calor. Clara se recompôs, acenou, posou para fotos com crianças. Sentou de novo. Não conseguia saber as horas, mas devia faltar pouco. Foi então que um garoto de bicicleta, carregando uma sacola de laranjas, parou bem na frente dela. Enfiou duas laranjas com força bico adentro: “Come, Picapau, come!” – e se mandou.

Nem deu tempo de entender. Clara sentiu o golpe das duas laranjas bem nos olhos. Começou a chorar baixinho dentro do cabeção de feltro.  (“Nunca mais! Nunca mais!”)

Quando a tardinha caiu, o amigo foi buscá-la, como o combinado. Clara entrou no carro, arrancou o cabeção, espiou no espelho: dois roxos ao redor dos olhos. Ele quis saber o que tinha acontecido, ela só falou enfurecida, entre dentes: “Eu quero ir para um bar. Quero beber até cair”. Ela sempre tão certinha, que novidade era aquela?

Nem aceitou passar em casa para trocar de roupa. Quis parar num boteco de esquina, bem fuleiro. Sentou junto do balcão, vestida com o macacãozinho azul e com o cabeção nas mãos, como se fosse um capacete de motoqueiro. Viu um homem pedir uma pinga, e o moço do balcão completar com groselha. “É isso que eu quero”.
O amigo advertiu: “Isso aí é Bombeirinho, Clara, é forte para caramba”.  “Mais uma razão. Manda um, moço!”.Tomou um. Arrgh! Mas a groselha tinha um docinho bom. Tomou outro. “Vê lá, hein, Clara”.  E um terceiro. Ficou incontrolável.
A raiva pela humilhação, o calor, a dor do soco das laranjas, Clara ia se lembrando e bebendo mais. Vestiu o cabeção de Picapau, saiu trançando as pernas, e dava para ouvir debaixo de todo aquele feltro as gargalhadas abafadas dela. Clara agora era um Picapau bêbado, rindo sem parar e sambando na frente do bar.
Um bebum que assistia à cena pediu no balcão: “Eu quero aquela água que o passarinho bebeu, hahaha!”. Outro bêbado apoiado na parede, bem quieto, olhava fixo para aquele Picapau dançarino até concluir, muito sério, mas traído pela voz pastosa: “Eu acho isso normal”.

A falsa Marilyn Monroe e o verdadeiro Manhattan

Por Cristina Ramalho (crônica publicada no Dringue.com)

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O trabalho parecia moleza: botar uma peruca loira, fazer a pinta perto da boca, se apertar no vestido justo. Fani só precisava caprichar na vozinha rouca, tímida-sexy, levar o bolo até a casa do aniversariante, tocar a campainha e, quando ele abrisse a porta, a cereja do presente seria ela cantar, como a verdadeira Marilyn Monroe para John Kennedy, um sussurrante Happy birthday to you. Cachê: duzentos reais.

Quem teve a ideia foi a Adelita, namorada do aniversariante. Tinha essa fantasia: celebrar o aniversário do amado com uma surpresa hollywoodiana. Mas não se atreveria a ser a estrela – sempre de bege ou preto e branco, sempre a eficiente do escritório, com aquele rosto redondo, nariz de ursinho, não ia colar. Adelita achou o telefone de uma agência de telegramas animados. Ligou. Pediu uma Marilyn e um saxofonista.

– Então, além da Marilyn, eu quero um moço tocando o parabéns no sax. Uma cena de filme mesmo.

– Claro, querida. O sonho é seu, a gente realiza, respondeu a moça da agência.

Tudo certo. Manhã de sábado, Fani, apertada no vestido e tentando não entortar o salto do sapato um número menor, já se aprumava perto da porta. O moço do sax, terninho barato, ao lado. A namorada não se aguentava de ansiedade.

– Olha, eu vou me esconder atrás daquela árvore, ai, quero só espiar a cara de surpresa dele.

Fani achou graça. Queria ganhar prêmios no teatro, sabia de cor as peças do Antunes Filho, mas trabalho é trabalho. E bem que gostava da ideia de ser a Marilyn por 15 minutos. Era uma romântica. Achava da maior ternura fazer os telegramas animados e ver a reação das pessoas.

Tocou a campainha. Nada. Tocou de novo. Nada. Tensão no ar. A namorada começou a roer as unhas. “Toca outra vez”, sussurrou lá da árvore. Pééé. Péééé. Um sujeito meio gordo, descalço e só de cuecas, atendeu a porta. A cara dele não era boa. Fani arranhou a garganta, esticou o bolo em que se lia “Meu amor, my love, mon chéri”, e começou, sibilante: “Happy birthday to you…” O sax acompanhava.

– Mas que merda é essa? – disse o sujeito amassado de sono.  “Happy birthday, Mr. Taborda”, cantou a Marilyn, açúcar na voz. Então surgiram, por cima dos ombros do Taborda, as mãos de longas unhas vermelhas. Uma moça só de calcinha estava atrás dele. – O que foi, meu bem? , perguntou a das unhas.

– Te-le-gra-ma a-ni-ma-do da Adelita! – entoou a Marilyn a toda velocidade. O moço do sax, antevendo a tragédia, foi saindo, pé ante pé, a música soando cada vez mais longe. Adelita saiu chorando detrás da árvore.

– Que que é isso, Adelita? gritou o Taborda. Fani deixou o bolo no chão e abriu caminho. Adelita avançou: “Seu canalha! Preparo a maior surpresa para você e você tá com outra”!

Fani pensou rápido e esticou as mãos: – São duzentos reais. O Taborda gritava cada vez mais alto. Adelita tentou pegar a só-de-calcinha pelos cabelos. Não se ouvia mais a música. O sujeito do sax já tinha desaparecido.

– São duzentos reais, insistia a Marilyn, que a essa altura já tinha arrancado os sapatos e só pensava em correr dali. Mas não ia perder os duzentinhos. Um gritava daqui, outra berrava mais alto, Adelita soluçava, Fani aproveitou o momento de fraqueza, ajudou a coitada da namorada abrir a bolsa, pegou seus duzentos, mais cem para o cara do sax, e se mandou.

Já que estava de Marilyn, que terminasse o dia com elegância cinematográfica. Calçou os sapatos de novo, foi até o bar de um hotel bacana ali perto, realizou um desejo: pediu um Manhattan. Era a bebida que a Marilyn Monroe, no papel de Sugar, improvisou no trem em Quanto Mais Quente Melhor, na cena em que o Jack Lemmon vestido de mulher aparecia com uma garrafa de bourbon. Fani não era Marilyn, Jack não era mulher, o Taborda não era o homem que Adelita imaginava. Mas o Manhattan, bem real, estava uma delícia.

O tango, o vinho e uma carreira amorosa

Uma taça de vinho, o sujeito enlaça a moça e começa a deslizar – o tango é uma aula de relacionamento

Por Cristina Ramalho

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A mão do sujeito se estendeu à minha frente. Ele estava me chamando para dançar. Engulo a taça de vinho e me aprumo. Ele, um braço esticado, o outro dando a volta na minha cintura, a perna já em movimento. Cintilei. Olha só, eu na pista de uma legítima milonga em Buenos Aires. Nos braços de um legítimo portenho.

— Não sei bem os passos, você me ensina?

— No sabes bailar el tango?

— Sou brasileira, mas adoro dançar, aprendo rápido. Me ensina uns passos básicos que eu pego – falei toda sorridente, aquele clichê tropical de achar que uma boa lábia é capaz de quebrar o gelo.

— No. Así no se puede.

E o portenho, na faixa dos 30 anos, bonito mesmo com o cabelão juba penteado para trás, foi me levando de volta para a minha cadeira. Estávamos no meio do salão, todo mundo olhando, e aquele homem de camisa aberta no peito ia me devolver para a cadeira. Que que é isso? De jeito nenhum, Gardelón.

Pedi primeiro na base da clemência, enquanto ele ia saindo da pista comigo, a mão que estava na minha cintura tinha subido para o meio das costas, sutilmente me empurrando: — Não vai nem tentar me ensinar? Só para eu ver como é. Ah, vai. Por favor.

— No se puede ensinar así.

Apelei para a força. Agarrei no braço dele e disse, entredentes: “Não vou ser mercadoria devolvida”.

— No. Tango es un tema serio. Por favor – e apontou a cadeira.

— Tem nada a ver isso aí. Eu pago. Te pago 20 pesos, mas não volto para a cadeira. Essa humilhação, não. O tempo passando e nós naquela situação ridícula. Ele continuava me empurrando, eu empurrava de volta. Quase enterrei as unhas no braço dele.— Eu não volto!

E ele dançou comigo. Na sua testa estava escrito “mujer loca”, mas uma música, ao menos, ele dançou.

Cinco anos depois

Lá estou eu na terra de Gardel de novo, apartamento arejado, na Recoleta. Bem perto tem uma escola famosa de tango. Corri para a aula. Vexame igual da outra vez não vou passar.

“La coreografia es como una lucha silenciosa”, ensina a professora argentina, cinturinha de 58 centímetros, bailando pelo piso de madeira como se rodopiar em oito mentalizando “dos por cuatro, dos por cuatro” fosse a coisa mais natural do mundo. Observo mais uma vez o passo a passo. Não vou aprender nunca. Foi então que me iluminei: finalmente entendi porque demorei tantos anos para acertar o ritmo com um homem. Sim, é metáfora: me refiro a aprender a lidar com o sexo masculino.

Tivesse sabido essa coreografia antes, eu teria conduzido minha carreira amorosa com muito mais esperteza – e quem sabe enriquecido depois de escrever tudo num livro de autoajuda. No tango a mulher não segue o homem (embora ela finja), nem se deixa levar pendurada nele. Não tem essa de somos um só. Ele puxa, ela segura de volta. A graça toda está na resistência. Nem forte, nem fraca. Firme. É pura física: do jeito que vai, volta. O tango é uma aula de relacionamento.

Hay que tener autoestima, claro. Para entrar em cena com aquela cara seríssima, o corpo ereto, é preciso acreditar. Já eu, que sempre achei legal ser levinha e capaz de seguir qualquer par no samba carioca, no forró de Jericoacoara, até no bolero da festa de casamento, sempre rindo, de boa, deixando a personalidade de lado para o sujeito agarrado em mim me levar adiante, bem, eu não podia esperar muito sucesso. Tá explicado.

Mas vamos a uma aula prática. Estamos no La Viruta, calle Armenia, 1366. Pista lotada, loiras em vários tons da química riscam o chão com sapatos de salto altíssimo, abraçadas a senhores altivos. Alguns usam perucas. Obedecem a um curioso código de trânsito, onde abre-se caminho para o casal que rodopia melhor, e ninguém leva esbarrão. É um acordo tácito, como se o jeito de avançar na vida fosse esse mesmo, alternando a vez de quem domina a cena.

Hora de entrar na roda e cavar nosso espaço no ecossistema. Engulo outra taça de vinho. Dois professores – a cinturinha de vespa e um homem de terno e bigodes – dão os comandos iniciais. Mulheres de um lado, homens de outro. Iguais na insegurança da primeira vez. A orquestra vai no clássico, La Cumparsita. “Los pares, formen los pares”. Somos nós. Os homens vêm em nossa direção, mulheres enfileiradas, e cada um vai pegando quem aparece. Mentalizo para vir o melhor (“O vesgo não, vai me dar nervoso”. “O loiro anão não dá, não tô pagando para passar vergonha”).

O que me escolhe é bem apessoado, dei sorte. Só que dá a mão mole. Paciência. Resistência. Tudo que vai, volta. Amoleço um pouco a mão. Professores batem palmas. “Cambien los pares”. Meu próximo é um tipo grande, confiante, me segura, é com esse que eu vou. “Cambien!”. Vem um alto, um baixo, o loiro anão, um rápido, outro incerto, vamos cambiando, rodopiando, eu tentando me adaptar a cada um, sem perder a postura.

Até que chega o par perfeito. Faço o ocho, dos, cuatro, esqueço a conta, paro de olhar para o chão para não pisar no pé do homem, estamos sincronizadíssimos. Se eu já não fosse casada, acharia que ele é minha alma gêmea.

Dia seguinte, o marido que não dança nem por decreto quer saber como foi. Conto tudo, quase eufórica. Ah, por que você não dança? Ia ser tão bom. Aí ele diz a frase no tom: “Fico feliz que você dançou, adoro te ver tão feliz”. Tudo que vai, volta. Estamos no mesmo passo. Como deve ser a vida.

Um clássico regado a outro

Boteco/ homem/ futebol combinam com rabo de galo, a bebida tradicional dos balcões de fórmica, que hoje tá virando chique. Aqui ela acompanha a narrativa de jogo com final romântico

Por Cristina Ramalho

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O sujeito sentado no banco alto arregaça as mangas da camisa, puxa um pouquinho as calças para cima, dá uma geral no bar. Batuca de leve a mão no balcão de fórmica vermelha.

– Ô campeão, vê aí dois rabos de galo! Ao lado dele, no balcão, o amigo sorridente, bonachão, uma cara de gordinho da escola, é o ouvinte. O primeiro se apruma no banco, copo na mão, dá um trago na bebida – ahhh – arranha a garganta e começa.

“Então, não sei se você se lembra, mas aquele dia — 14 de janeiro de 2000! (emposta a voz na data como se fosse um locutor de rádio) — estava quente como o diabo. A Mariza, a minha mulher, lembra dela? A Mariza queria ir à praia, paulista no Rio, já viu, e à noite jantar. Eu só pensava no nosso Coringão com o Vasco, que tinha combinado de ver com um pessoal. A torcida toda já devia estar lotando o Maracanã e a Mariza, ali, me dando bronca porque eu ia saindo, nem liguei que ia rolar um jantar lá na Barra, com aqueles amigos dela, gente que eu nunca confiei, umas mulheres que só davam risadinhas, e um carioca de cabelo espetado que falava pirrê de batata, fazendo biquinho para parecer francês. Mariza achava o homem do pirrê o fino. Parece que ele sabia de vinhos e, quando ia provar, dava uma fechadinha nos olhos e uma mordidinha na beira da taça, para derreter a mulherada. Ah, de matar! Eu para mim acho que mulher que cai em golpe da mordidinha na taça já nem deve ser levada em consideração. (o gordinho acha a maior graça)

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A discussão esquentou, a Mariza toda arrumada gritando na rua que nem nas nossas férias eu ligava para ela, eu olhava o relógio, o coração saindo pela boca: o jogo, meu Deus, e eu ia perder a final Corinthians e Vasco, o mundial da Fifa, quê isso? Mariza correu atrás de mim, eu subi no primeiro ônibus sem nem olhar se era via túnel velho ou túnel novo. (o gordinho já está vermelho de tanto rir) Desci uns três pontos depois, peguei um táxi, o calor era de matar, e no túnel, ah, parece que um cara tinha sido  atropelado e o trânsito parou. No rádio o locutor anunciava Corinthians e Vasco se aquecendo.

O calor no táxi, o relógio, meu ingresso molhando na mão suada, eu ia ter um infarto, já via a Mariza gritando comigo no hospital que eu era capaz mesmo de fazer de tudo para estragar o jantar dela com a turma do homem do pirrê. A essa altura já não dava mais para achar meus amigos lá no estádio, eu teria de assistir o jogo sozinho.

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O motorista acabou me deixando na entrada da torcida do Vasco. O portão fechado. (o gordinho faz uma careta de pânico). O jogo já ia começar, de fora eu escutava a torcida, os gritos, as ôlas. Implorei para o guarda do estádio, a barriga caindo fora da bermuda, o olhar de desprezo, aquele sotaque. ‘Vai dar, não, meirrmão’. A torcida urrava lá dentro. Daí eu vi aquele major aposentado que morou em São Paulo, lembra? (o gordinho faz um não com a cabeça e um sinal com a mão pedindo outro rabo de galo) Aquele vascaíno que andava com um palito de dente na boca e dizia que o Romário era muito melhor que o Pelé. O homem já estava abrindo um sorriso com o palito, para a gozação com a minha cara, quando entendeu meu desespero. Mandou me liberar. Meu coração saltou de novo – eu devia minha vida a um vascaíno!

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O jogo ficou no 0 a 0… Trinta minutos de prorrogação. 0 a 0! Eu ia morrer. (o gordinho, cada vez mais animado, resolve falar: “Eu lembro, nossa, fomos pros pênaltis”) Rincón marcou o primeiro. Romário empatou. O Dida segurou um, 3 a 2, aquele calor, o suspense insuportável, eu sem poder torcer pelo Corinthians no meio do pessoal do Vasco, comecei a passar mal. Fui ficando tonto, o coração acelerou, o peito doía, o calor, não vi mais nada… Escutei, de longe, que o Marcelinho perdeu o nosso gol. (o gordinho já tá no terceiro copo e solta um shuu!) Acordei na ambulância, o médico falou que eu tive um negócio, assim, um princípio de infarto. Eu só pensava no jogo. Quem ganhou o jogo, quem é o campeão do mundo? ‘O Corinthians’, disse o doutor. ‘O Edmundo perdeu o pênalti, o Dida segurou’, ouvi uma voz de mulher. Ah, quase tive um infarto só de alegria, esqueci o calor, a dor no peito, o que eu ia escutar da Mariza na volta…

Então, não sei se você se lembra da Maria Carolina, aquela que eu namorei no colégio. Soube que tinha virado enfermeira, disseram que ela havia mudado de cidade, e agora ela estava lá, no Maracanã, dando plantão. A mão que me segurou, delicada, era dela, da Maria Carolina, corintiana como eu. A voz que me falou o resultado, era dela, da Maria Carolina, minha primeira namorada. Não sei por que, a primeira coisa que perguntei foi: ‘Você casou?’. ‘Não’, ela me sorriu com aquele mesmo sorriso de menina. Pois é, vamos casar, quero te dar o convite. O quê? A Mariza? Você não lembra? Da última vez que eu ouvi falar, saiu no tapa numa festa porque o sujeito do pirrê, o fino, tava mordendo a taça de vinho para uma outra, parece que era pernambucana… (ele se vira para o balcão) Ô campeão, vê mais um rabo de galo aí!”

*publicado no Dringue.com

 

Estás bor-ra-cho!

A narrativa de amor de uma paraguaia com um caubói americano temperada por um Old Fashioned

Por Cristina Ramalho (publicado também no Dringue.com)

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“Vai um dringue?”, pergunta JR Ewing, o patriarca de Dallas

Foi no Paraguai. Eu estava em um cassino dentro do resort de um americano, figurão do tipo caubói. Ele andava pelos corredores, entre as máquinas de caça-níqueis e umas loiras em todos os tons da química, um JR Ewing com chapelão e tudo, saído direto do seriado Dallas. Alto, muito alto. Alguém me soprou no ouvido que a baixinha lá atrás, uma versão mignon de Joan Collins (eu sei, eu sei, Joan era do Dinastia, mas um casal desses ocupa dois seriados) equilibrada sobre plataformas de Carmen Miranda, é a sua esposa. Ela cintila: cílios imensos, roupa de paetês, a cintura apertada. As mãos têm pedras faiscando em todos os dedos, unhas vermelhas de dar medo. Somos apresentadas.

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Mulher sozinha em férias

Uma cantada regada a um bom Pisco Sauer – e muita história para contar para os amigos

Por Cristina Ramalho (publicado também no Dringue.com )

La Main au Collet TO CATCH A THIEF d'AlfredHitchcock avec Cary Grant, Grace Kelly, 1955

Cary Grant, bom de lábia, passa uma cantada em Grace Kelly em Ladrão de Casaca (1955)

Sempre me lembro da história de uma amiga carioca que aproveitou a folga para passar uns dias na Bahia enquanto o marido, com trabalho acumulado, teve de ficar no Rio. Muito bonitinha, ela caminhava pelas areias baianas quando um sujeito do pedaço, malemolente, sem camisa, foi chegando, o olhar pidão, aquele papinho-gentileza-com-a-turista. Ofereceu-se para ser um guia, falou das maravilhas locais, a natureza,” já viu o pôr do sol daqui?” e coisa e tal, até que abriu o sorriso alvo e tascou a cantada: “Moça tão bonita, sozinha, não pode. Com você eu caso!”

Ela agradeceu, explicou que já era casada. “Ôxi, cadê o marido?” “Não pôde vir”. Ele examinou a carioca de alto a baixo e não conteve a frase, o sotaque arrastado: “Mas é muuuita confiança”.

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O amor começa

Resolvi declarar homenagem/paródia ao “O Amor Acaba”, de Paulo Mendes Campos, que foi um dos escritores que melhor descreveu a paixão. É também uma vontade de dizer que sim, o amor acaba, mas também recomeça sempre. E, bom, é uma forma bem malandra de eu declarar o meu amor.

 

O amor começa. No primeiro beijo visto no cinema, ali na tela, o ator e a atriz cintilantes como se a vida, tirando umas passagens meio difíceis no roteiro, fosse sempre uma delícia. No primeiro beijo eu daqui da plateia, ele ainda atrapalhado, sem saber se tem limite onde botar as mãos. Na primeira vez que fomos juntos para o mar, água batendo nas pernas, o verde perto da areia, o azul lá longe, vontade do momento durar para sempre. No primeiro macarrão feito sem pressa, tomate cortadinho aos poucos, manjericão, depois o queijo, taças de vinho e sorrisos que prometiam sensações. Nas primeiras sensações. Na primeira música enviada por email, a letra dizendo as coisas que ele não consegue dizer.

Nas primeiras bolhas de champanhe geladinho o amor começa. Na primeira caminhada pela avenida, tarde da noite, vento no rosto, assunto que não acaba nunca… Na primeira reconciliação depois da frase torta, discussão boba, mas deu aperto no estômago, medo de perder. Na primeira mesa com os amigos dele, orgulho de ser apresentada na roda, agora é para valer. No primeiro encontro com a mãe dele – se o encontro for bom. No primeiro silêncio confortável, sem precisar dizer nada, como se nós dois pensássemos em voz alta sobre qualquer coisa. No primeiro sorvete, fim de tarde, risos só de olhar quem passa, ouvir a conversa vizinha, e imaginar as mesmas coisas.

Na primeira vez que ele conta um filme, e se empolga, e eu me emociono de ouvir, como se assistisse junto, ou só porque é tão bonito o jeito que ele conta. Na primeira vez que ele se emociona com o que escrevi. O amor começa quando ele não sai de perto na hora da minha doença. Na primeira vez que ele vê futebol com o meu pai. No primeiro passeio dele, atento, com a minha cachorra. No primeiro presente dele para a minha filha. No primeiro churrasco que ele se arrisca a fazer. O amor começa quando ele chega. E traz um chocolate. O amor começa antes de ele dizer eu te amo. Mas começa bem melhor quando ele diz.

 

 

Quem sabe alguém está olhando

foto: Ana Ottoni

Caiu a última casquinha no dia do Natal, e olha que coisa, volto ao parque e um sujeito ao meu lado me observa, abre um sorrisinho tímido e me pergunta se melhorei. “Então você…” O moço, Daniel, explicou que não foi nada, estava acostumado a sangue, só me pegou no colo porque com aquele calor, asfalto quente, não dava, melhor me botar na grama, “fiz um travesseirinho com sua mochila, você não se lembra?” Não, não me lembro. Não lembro de jeito nenhum como é que fui parar um mês atrás naquela ambulância, amarrada, ensanguentada, umas vozes ao longe, tudo correndo, cena de plantão médico da TV.

Cenas. Todas misturadas. As de horror eu lembro: a cabeça dói, as costas doem, tudo dói. Pernas, não sei onde estão. As vozes lá longe. Calor infernal. Clang! A porta abre. As pernas não mexem. A cabeça dói. As vozes. Vem médico de um lado, médico de outro, não consigo ver os rostos, olhar do lado não dá, com esse colar que botaram ao redor do meu pescoço.  As vozes. Que calor. “Você não precisa se assustar, o médico vai falar tudo”. Tudo? Melhor não imaginar. Então alguém me dá a mão. “Tô aqui”. É o marido, sorrisão solidário.

O marido está aqui? Acho que agora já era.

A história vem aos pedacinhos, como as casquinhas que ainda se desprendiam dos meus cabelos um mês depois.

“Você caiu no parque, teve convulsão, uma moça achou o seu celular e ligou no último número, que era o meu, e sangrou muito porque abriu sua cabeça”.

“Diz que o senhor que levou sua cachorra teve um infarto na rua uma vez e ficou tão comovido quando foi ajudado, socorrido, que já se prontificou a segurar a coleira da Zara”.

“Ah, que fofa, a sua cachorra. Na hora que você estava lá, estendida no chão, lambeu seu rosto o tempo todo, não latiu, nem pulou, tão educada, e olha que juntou umas 30 pessoas em volta”.

“Mãe, quando ele me falou que você estava no hospital peguei a bicicleta correndo, eu queria chegar logo”.

“Ai, tinha tanto sangue, nem quis assustar seu marido, amenizei, que bom que ele é tranquilo, né?”

“Era você, lá no parque? Nossa, um amigo meu viu, tava lá”.

Ninguém sabia o meu nome. Uma mulher sem documento e com uma cachorra bonita, uma mulher que se estatelou no parque num dia de sol de rachar a moringa. Uma mulher que rachou de fato a moringa – e que no meio daquela gente trazia uma história nova para o dia. Mais tarde, em alguma conversa numa roda alguém vai falar qualquer coisa sobre parques e outro, na sequencia, emendar: ”Parque? Menino, vi uma mulher caída lá hoje, sangue no chão …”

Seis dias de hospital. Doze pontos na cabeça. Frases solidárias. Depois todo mundo se apressando, carinhosamente, em me ajudar, dar um jeitinho. “Não precisa entregar o texto agora, imagine, importante é se cuidar”. É que o inesperado dos outros traz aquela familiaridade do podia-ser-comigo. Já, já volta tudo ao normal, e tô antevendo que vou ter outra convulsão para não ter de dar conta do trabalho.

Sabe aquela sensação quando você olha alguém de longe, esperando o metrô, por exemplo, e reconhece uma pessoa vagamente conhecida? Pode ser um vizinho com quem mal troca oi, mas ali, na multidão, a visão dele ganha um sentido. Você sorri, ele vai sorrir de volta, vocês trocam um olhar solidário, que coincidência, esperando o metrô ali, tão longe de casa. Não é preciso dizer nada. Houve um momento, súbita cumplicidade, e dali a pouco vocês vão desaparecer e cada um cuidar da sua vida.

Daniel, o anjo que me socorreu em 25 de novembro, reapareceu no parque no dia do Natal e se apresentou. Natalie, a anja com Natal até no nome, a moça que achou meu celular e discou o número com mais ligações (que era o do marido), me mandou uma mensagem de boas festas. Abri o sorriso vaidoso de ter um instante de cumplicidade, a Providência Divina disfarçada em pessoas tão gentis.

Vontade de espalhar minha história, puxar assunto com o primeiro desconhecido (“pois é, rachei a cabeça, foi ali mesmo perto da ciclovia, diz que tinha muito sangue”). E quando a pessoa me olhasse meio com pena, meio assustada, eu diria triunfante: “Ah, mas agora tô bem, gente que eu nem conhecia me ajudou”.

Então, de repente, comecei a pensar nas histórias que os outros teriam e talvez quisessem contar. Da moça que perdeu o pai, doente há anos, e sem memória, mas era o pai dela, e agora, como vai ser? Daquela outra com uma cara vitoriosa de quem se vingou da má amiga. De quem acabou de ouvir, suprema glória, elogio de um ex-inimigo. Do menino que fez o gol mais lindo lá na escola. Do que saiu do hospital, aliviado. De quem passeia no parque para esquecer a dor que é ter uma pessoa muito querida no hospital e fica indignado com a falta de sensibilidade dos que não sabem de nada e passam dando gargalhadas. Como é que alguém pode rir assim quando temos uma pessoa no hospital?

Não, ninguém me conta nada. E me deu uma vontade de dizer para quem passa que sim, todos nós temos os mesmos enredos, mas se você, de súbito, se estatelar no chão e achar que é o fim, alguns vão parar, ajudar, se solidarizar, talvez salvar sua vida. Dali a pouco vão embora, misturados na multidão, já pensando em outras coisas, e um dia, por nada em especial, você vai se flagrar abrindo um sorriso. Não um sorriso qualquer. Um que diz que sua história é única – mesmo que só você e mais uns 2 ou 3 se lembrem disso.

Veja bem

Até que demorou para a minha visão das coisas atrapalhar a vida. Na classe eu me sentava no fundão, via tudo em panorâmica, não perdia um tiquinho da lousa, muito menos as piadas.

Aos 13, quando começam a se revelar os altos e baixos da existência, me classificaram com 0,5 grau de miopia. Óculos, não, obrigada. O que os olhos não viam ajudava a me esconder, desengonçada e rechonchuda, do foco nem um pouco amoroso dos meninos. Sem a nitidez da realidade, eu podia ser quem bem quisesse. E tudo que eu não queria era ser quatro-olhos.

Meu peso diminuiu, o grau aumentou. Diziam que bastou eu afinar a cintura para ficar metida – não retribuía aos acenos (aqui cabe defesa: antes de emagrecer, não me lembro de ninguém acenando animado para mim). Antes fosse isso, mas o fato é que eu só enxergava se a pessoa chegasse mais perto. Na dúvida, de tímida virei popular: retribuía qualquer tchauzinho, por mais na diagonal que fosse.

Mas por que não usar óculos? Veja bem, eu tinha feito esforço sobrehumano para caber no 36. Era dentuça. E ainda ia me esculachar?

Lentes de contato me davam aflição. Já crescida, os óculos só eram tirados da bolsa no teatro ou cinema. Luzes acesas, lá iam para a bolsa, de novo. Só saíam de novo para eu dirigir, o que também demoraria um bocado.

A essa altura a miopia estava pelos 1.5. Até contribuiu para um romance. Na festa apertei os olhos para conferir se aquele loiro alto que se avizinhava era bonito mesmo ou delírio pós champanhe. Ele não entendeu que eu só o olhava fixo porque não enxergava. Chegou rasgado em sorriso e na mão, duas taças. Pelo que registrei, o resto foi uma beleza.

Relapsa, sempre, larguei os óculos no carro, rolaram no chão, as lentes riscadas refletindo todo um estilo de vida: um pouco embaçado pelos anos, mas sempre enxergando luz boa lá no finalzinho. Uns sopros de anjos – via filha e marido – me convenceram a ir ao oculista, eu andava apertando demais os olhos. Exagero. O grau subiu pouco, só mais meio. E como usei pouquíssimos óculos, ainda me orgulho de posar de garota: enquanto todo mundo ao redor puxa os temidos oclinhos de leitura, eu posso me gabar de ler o cardápio em qualquer penumbra, não importa o tamanho da letra, e ainda acertar o pedido.

O doutor é um amor, me fala da Grécia, da vida, de vinhos, “continue assim que sua miopia tá boa, não precisa de óculos o tempo inteiro” – mas quando checa minha idade na ficha acha que é hora de medir a pressão ocular. Foi aí que ele mudou de tom, chamou para conversa séria e mandou para uma bateria de exames. Abre o olho para a foto da retina, estica feito tortura em Laranja Mecânica, pinga colírio, e depois outro, e mais outro. A japonesa falante me dá um mouse para apertar o que vejo nas laterais de uma tela de videogame. Luzinha em cima, luzinha embaixo, luzinhas pulando a todo momento. De repente não vem luz nenhuma. O computador não vai me enganar! Na dúvida, aperto o mouse.

Aprendo que o nervo ótico é dividido em dez quadradinhos. Nove dos meus já eram. Se eu me tratar, muito que bem. Se não, perco esse fiozinho que resta.Vou parar numa espécie de dr. House dos olhos, mas com sorrisos e bons modos. Mais exames. O House gente fina me conta que tem falha na minha genética e meus olhos desprendem pigmentos que fecham os canais. Quero sair correndo. Também não pode. “Você tem de parar com os esportes de alto impacto”.

Então me ensinam que chegou a hora de exercitar meu olhar. Ampliar meus horizontes: admirar o por do sol, espiar as estrelas, olhar a linha do mar, o pensamento lá no fundo. Alguém me diz que pode ter componente psicológico aí, e começo a ficar desconfiada de mim mesma. Terei visto coisa que não devia? Ou vai ver é castigo divino por conta daquela vez, na quarta série, que brincávamos de filme de terror e o Ivaldo, que tinha um olho de vidro, me encurralou no corredor e tirou o olho. E eu gritei tanto, tanto, que o menino sumiu dali, talvez cheio de complexos.

Se ver a realidade nunca foi meu forte, parece que estão me cutucando agora para pingar o colírio e encarar. Tento vislumbrar poesia, salpicar charme: vou dar a mão sem olhar, enxergar o tal lado cheio do copo, celebrar a alegria dos sentidos. É pegar esse limão que pintou e fazer uma boa caipirinha, cantarolando alto o samba do Paulinho da Viola: “a vida não é só isso que se vê…” Agora, se um dia a coisa ficar preta de vez, vou é segurar firme na coleira da Zara, a labradora mais fofa do planeta, e que sabe me guiar para as alegrias de muitos instantes.

Dar a cara pra molhar

Jacques Mayol, o mergulhador mais famoso que se tem notícia, dizia que o habitat natural do homem é o oceano. “Nascemos nus, num oceano em miniatura, que é o ventre da mãe”. Nadar, então, seria voltar às origens em todos os sentidos, a melhor das sensações. Sei não. Do próprio ventre saí correndo, prematura, e embora minhas primeiras fotos sejam na praia (morei em Santos quando era bebê), tinha com o mar um acordo tácito: eu não ia além da minha insignificância, ele não perdia tempo comigo.

Nem me lembro da primeira vez que eu vi o mar. Guardei uns deslumbramentos, aquela alegria de gritar quando vem a onda, o azul pertinho da água, o verde lá longe, o coração apressado, as pernas enfiadas na areia, a água escorregando saborosamente por baixo. Um arrepio de medo. O mar. Do peito não passava. Minha mãe, que não botava fé nessa história de água maternal, ficava espiando de longe, um de longe que era bem pertinho. Morria de medo por mim. Ela nunca soube nadar.

Já a praia, às vezes para ela, e sempre para mim, era o melhor dos mundos. Gostávamos de sentar nas cadeiras num dia de sol bom, a conversa despenteada, meio falar de nada, dar umas risadas. De repente batia uma felicidade por nada em especial, era por estar de papo para o ar, sol bom, o pé fazendo suish, suish na areia de talco, na boca um Chicabon.

Muitas vezes ela não estava – e sem suas espiadas eu ia um pouco mais, dançava no vai e vem das ondas, dava meus furos na água. Até que eu fui longe. Umas braçadas em Ubatuba, um mergulho de garrafa em Fernando de Noronha, farra com bóia num cânion no rio São Francisco, flutuar em Bonito, boiar na Tailândia, pular ondas com um amor de mãos entrelaçadas no Nordeste. Voltava para contar minhas descobertas, minha mãe ouvia assustada. Eu adorava me atirar sem olhar. Um sorrisão e a dádiva: sentir o corpo na água.

Mas a cara, não. Minha cara eu não dava para molhar. Nem no chuveiro me atrevia a tomar água no rosto. Nadava o cachorrinhês, pescoço duro, rosto para fora, a deselegância indiscreta numas braçadas sem suingue para chegar logo.  Assim desbravei piscinas, lagos, mares, sempre com aquela eterna sensação de que nasci com alguma coisa errada. O pavor de morrer afogada, o coração disparado, sonhos durante anos de tsunamis gigantes me engolindo. Meu medo de enfiar a cara na água era quase tão grande quanto o medo de ficar sem mãe um dia.

Às vezes a vida fica dolorida e a escuridão do mundo esmaga a gente. Minha mãe morreu. Só me restou ir para o fundo.

Com o empurrão de uma amiga querida fui parar de maiô, touca e 40 anos de vergonha na aula de natação. A vontade de sair correndo. Braços para um lado, pernas para o outro, o corpo troncho – devo estar parecendo um jacaré comendo uma garça.

Dias de tortura. Meia piscina é mais do que uma maratona. Os óculos escondem as lágrimas. O coração dispara. Isso nunca vai dar certo. Nuns dias bate sol, a água fica azulzinha, a boca até fecha antes de eu engolir um balde. Vou pra frente, feliz da vida. Na aula seguinte, mal dou duas braçadas, engasgo, entorto, bebo dois litros, volto dez casas e caio no fosso do dragão. Isso vai ser difícil.

A amiga vem com sorriso otimista. “Você está nadando”. O marido traz lição de vida, aprender é assim mesmo, e olha que beleza, você já atravessou a piscina. Uma terapeuta enxergou a profundidade das relações afetivas. Leio no I Ching que medo e água estão ali, ó, grudados, e agora chegou a hora de nadar em águas mais profundas.

Então um dia, do nada, deslizo na água. As inquietações, por segundos, ficaram para trás. Aprendo a respirar, mas ainda assim só consigo me soltar quando estou com os pés de pato. E a minha cara está inteira na água. Acabaram de inaugurar o mundo. Estou levinha, levinha, solto as bolhas, que orgulho, se eu já tivesse aprendido como não engolir tudo juro que ia abrir um sorrisão. Ah, Jacques Mayol, você tinha razão: mergulhar, a melhor das sensações.

Talvez eu esteja delirando, mas tenho quase certeza que vi minha mãe agarradinha aos meus pés de pato…

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