– Mas por que eu?
– Meu bem, você é a única que cabe nessa roupa. E adora crianças.
Clara olhava desolada para a fantasia de Picapau sobre a cadeira. O inferno era a cabeça – um imenso cabeção de feltro, pesado, quente como o diabo, com penas vermelhas, medonho de feio. Os olhos eram também de feltro, grudados na cara. Para enxergar lá de dentro Clara tinha de olhar pelo bico. O restante do figurino não colaborava: um macacãozinho bem curto, azulão, com rabo de penas, meia calça e sapatilhas no mesmo tom.
Essa história aconteceu há um tempo. No tempo em que existia o videocassete e, consequentemente, as videolocadoras. O dono de uma delas achou que seria legal ter o Picapau na porta da loja, acenando para a garotada. Sobrou para a Clara: pequenininha, tipo mignon, ela era de fato a única adulta que entraria naquela fantasia. Também era verdade que adorava crianças. E foi pensando em ganhar um troco para ajudar a pagar a faculdade de Pedagogia que topou pagar esse mico. Três horas em pé, num calor de rachar a moringa, sustentando o peso do mundo no cabeção de feltro e dando tchauzinho.
O lado bom era o anonimato da coisa: ninguém a reconheceria por baixo do bico. Foi o que ela pensou enquanto acenava com a luva azul. A maioria das crianças nem respondia. Uns puxavam as penas da cauda. Os menorzinhos choravam alto, mães dizendo: “Não, querido, é só um pássaro bobo”.
A única que prestou atenção apontou para uma mancha na barriga do boneco, e berrou: — Mãeeee, a barriga do Picapau tá suja!
Firme, Clara. Já houve dias piores: aquele aniversário que a mãe de três meninos largou o menorzinho no seu colo, a fralda imunda, e sobrou para você trocar o cagão. E a viagem de Kombi até Campinas? Você e os rapazes vestidos de Jaspion e Changeman prontos para animar a festa num condomínio. A Kombi quebrou na estrada e vocês começaram a empurrá-la, na chuva, enquanto os caminhoneiros que passavam, gritavam, rindo: “Aí, Jaspion, força! Vai nessa, Changeman!”. Esse Picapau tava moleza.
Assim meditando sobre as escolhas da vida, Clara aproveitou um momento de pouco movimento e sentou-se na muretinha em frente à loja. Cruzou as pernas azuis. Passou uma caminhonete de onde um sujeito suado, camiseta regata, anunciou em altos brados: “Ééé, Picapau, eu te conheço. Você é gostosinha”.
Pelo amor de Deus! Quanto tempo faltava para acabar aquela tortura? Que calor. Clara se recompôs, acenou, posou para fotos com crianças. Sentou de novo. Não conseguia saber as horas, mas devia faltar pouco. Foi então que um garoto de bicicleta, carregando uma sacola de laranjas, parou bem na frente dela. Enfiou duas laranjas com força bico adentro: “Come, Picapau, come!” – e se mandou.
Nem deu tempo de entender. Clara sentiu o golpe das duas laranjas bem nos olhos. Começou a chorar baixinho dentro do cabeção de feltro. (“Nunca mais! Nunca mais!”)
Quando a tardinha caiu, o amigo foi buscá-la, como o combinado. Clara entrou no carro, arrancou o cabeção, espiou no espelho: dois roxos ao redor dos olhos. Ele quis saber o que tinha acontecido, ela só falou enfurecida, entre dentes: “Eu quero ir para um bar. Quero beber até cair”. Ela sempre tão certinha, que novidade era aquela?