Quem sabe alguém está olhando

foto: Ana Ottoni

Caiu a última casquinha no dia do Natal, e olha que coisa, volto ao parque e um sujeito ao meu lado me observa, abre um sorrisinho tímido e me pergunta se melhorei. “Então você…” O moço, Daniel, explicou que não foi nada, estava acostumado a sangue, só me pegou no colo porque com aquele calor, asfalto quente, não dava, melhor me botar na grama, “fiz um travesseirinho com sua mochila, você não se lembra?” Não, não me lembro. Não lembro de jeito nenhum como é que fui parar um mês atrás naquela ambulância, amarrada, ensanguentada, umas vozes ao longe, tudo correndo, cena de plantão médico da TV.

Cenas. Todas misturadas. As de horror eu lembro: a cabeça dói, as costas doem, tudo dói. Pernas, não sei onde estão. As vozes lá longe. Calor infernal. Clang! A porta abre. As pernas não mexem. A cabeça dói. As vozes. Vem médico de um lado, médico de outro, não consigo ver os rostos, olhar do lado não dá, com esse colar que botaram ao redor do meu pescoço.  As vozes. Que calor. “Você não precisa se assustar, o médico vai falar tudo”. Tudo? Melhor não imaginar. Então alguém me dá a mão. “Tô aqui”. É o marido, sorrisão solidário.

O marido está aqui? Acho que agora já era.

A história vem aos pedacinhos, como as casquinhas que ainda se desprendiam dos meus cabelos um mês depois.

“Você caiu no parque, teve convulsão, uma moça achou o seu celular e ligou no último número, que era o meu, e sangrou muito porque abriu sua cabeça”.

“Diz que o senhor que levou sua cachorra teve um infarto na rua uma vez e ficou tão comovido quando foi ajudado, socorrido, que já se prontificou a segurar a coleira da Zara”.

“Ah, que fofa, a sua cachorra. Na hora que você estava lá, estendida no chão, lambeu seu rosto o tempo todo, não latiu, nem pulou, tão educada, e olha que juntou umas 30 pessoas em volta”.

“Mãe, quando ele me falou que você estava no hospital peguei a bicicleta correndo, eu queria chegar logo”.

“Ai, tinha tanto sangue, nem quis assustar seu marido, amenizei, que bom que ele é tranquilo, né?”

“Era você, lá no parque? Nossa, um amigo meu viu, tava lá”.

Ninguém sabia o meu nome. Uma mulher sem documento e com uma cachorra bonita, uma mulher que se estatelou no parque num dia de sol de rachar a moringa. Uma mulher que rachou de fato a moringa – e que no meio daquela gente trazia uma história nova para o dia. Mais tarde, em alguma conversa numa roda alguém vai falar qualquer coisa sobre parques e outro, na sequencia, emendar: ”Parque? Menino, vi uma mulher caída lá hoje, sangue no chão …”

Seis dias de hospital. Doze pontos na cabeça. Frases solidárias. Depois todo mundo se apressando, carinhosamente, em me ajudar, dar um jeitinho. “Não precisa entregar o texto agora, imagine, importante é se cuidar”. É que o inesperado dos outros traz aquela familiaridade do podia-ser-comigo. Já, já volta tudo ao normal, e tô antevendo que vou ter outra convulsão para não ter de dar conta do trabalho.

Sabe aquela sensação quando você olha alguém de longe, esperando o metrô, por exemplo, e reconhece uma pessoa vagamente conhecida? Pode ser um vizinho com quem mal troca oi, mas ali, na multidão, a visão dele ganha um sentido. Você sorri, ele vai sorrir de volta, vocês trocam um olhar solidário, que coincidência, esperando o metrô ali, tão longe de casa. Não é preciso dizer nada. Houve um momento, súbita cumplicidade, e dali a pouco vocês vão desaparecer e cada um cuidar da sua vida.

Daniel, o anjo que me socorreu em 25 de novembro, reapareceu no parque no dia do Natal e se apresentou. Natalie, a anja com Natal até no nome, a moça que achou meu celular e discou o número com mais ligações (que era o do marido), me mandou uma mensagem de boas festas. Abri o sorriso vaidoso de ter um instante de cumplicidade, a Providência Divina disfarçada em pessoas tão gentis.

Vontade de espalhar minha história, puxar assunto com o primeiro desconhecido (“pois é, rachei a cabeça, foi ali mesmo perto da ciclovia, diz que tinha muito sangue”). E quando a pessoa me olhasse meio com pena, meio assustada, eu diria triunfante: “Ah, mas agora tô bem, gente que eu nem conhecia me ajudou”.

Então, de repente, comecei a pensar nas histórias que os outros teriam e talvez quisessem contar. Da moça que perdeu o pai, doente há anos, e sem memória, mas era o pai dela, e agora, como vai ser? Daquela outra com uma cara vitoriosa de quem se vingou da má amiga. De quem acabou de ouvir, suprema glória, elogio de um ex-inimigo. Do menino que fez o gol mais lindo lá na escola. Do que saiu do hospital, aliviado. De quem passeia no parque para esquecer a dor que é ter uma pessoa muito querida no hospital e fica indignado com a falta de sensibilidade dos que não sabem de nada e passam dando gargalhadas. Como é que alguém pode rir assim quando temos uma pessoa no hospital?

Não, ninguém me conta nada. E me deu uma vontade de dizer para quem passa que sim, todos nós temos os mesmos enredos, mas se você, de súbito, se estatelar no chão e achar que é o fim, alguns vão parar, ajudar, se solidarizar, talvez salvar sua vida. Dali a pouco vão embora, misturados na multidão, já pensando em outras coisas, e um dia, por nada em especial, você vai se flagrar abrindo um sorriso. Não um sorriso qualquer. Um que diz que sua história é única – mesmo que só você e mais uns 2 ou 3 se lembrem disso.

Limite para quê?

Fernanda de Camargo-Moro em 1970.

Por Cristina Ramalho

Um tapa na cara. Assim que Fernanda abriu a porta do seu quarto de hotel no Cairo veio o bofete, dado por um policial egípcio. Ela esticou o olho e viu outro policial, as gavetas reviradas. Acabou amarrada numa cadeira, o vestido rasgado, presa no último andar do Sheraton. Sem saber, tinha cometido dois crimes:

1-      Ter entrado no Egito com livros de Israel na bagagem. Ela vinha de Israel, isso não aparecia no passaporte, e seguiria dali para Angola. Naquele ano de 1971, geografia e história andavam confusas, Egito e Israel tinham saído de uma guerra e já preparavam a próxima.

2-      Ter os cabelos e os olhos negros de uma terrorista famosa na época por aquelas bandas: a palestina Leila Khaled. Fernanda pensou nos quatro filhos que a esperavam no Rio e assim que conseguiu se ver livre se pirulitou de volta para casa num avião que pegou em Chipre. Dali a pouco iria para outro ponto exótico do atlas.

Nada dá mais preguiça do que ouvir algum desses chatos que bastam ter alguma história nova para contar e já saem dizendo que sua vida daria um livro. Deviam antes dar uma espiada na vida de Fernanda de Camargo-Moro, única arqueóloga de comida da Unesco, museóloga, escritora. Um dia presa no Egito, no outro escavando em Israel, ou passando a tarde aprendendo receitas de família no interior da Índia, Fernanda viajou por todo o Oriente (“Do Extremo Oriente só não estive no Laos”), a América Central, conhece a Europa inteira, cruzou fronteiras árabes, hindus, afegãs, zonas de conflito, muitas vezes sozinha.

Repetiu famosas rotas históricas como a da seda, a do incenso, a das especiarias, tudo o que a gente só conhece… dos livros. Ela escreveu vários: sobre a Índia, a Turquia, Veneza, o Iêmen, todos com o foco na comida ou na religião para entender como as culturas se cruzaram. Aquilo que no vocabulário de hoje chamamos de globalização.

“Eu encontrava nas escavações vestígios de comida, mandava analisar, e ia estabelecendo as pontes. Quando fui mexer na Índia percebi que para entender o país eu precisava entender o que cada etnia comia, e que tranças eram feitas. Por exemplo, todo mundo pensa que o curry é descoberta indiana, o curry é uma dádiva que a Pérsia deu para a Índia. As pessoas hoje dão tanta importância para falar de globalização, mas os costumes sempre se misturaram”, diz Fernanda, que em cada livro mistura, saborosamente, fatos documentados, causos e, sempre, receitas, para o leitor captar na panela a química, a geografia e a alma de cada cultura. Sua última viagem exploradora foi em 2007, para Dubai, tema do mais recente livro, Mar de Pérolas, sobre as civilizações do Golfo, lançado em 2008 pela Ed. Record. Assim como escancara o sorriso para falar das relíquias pré-islâmicas, ela se acende toda ao descrever os shoppings e o aparato consumista árabe. “Ah, Nova York já era, Dubai é demais”. É capaz de enxergar beleza e valor em cada instante da história.

Lá no Golfo ela rodou por tudo e, com inveja dos pescadores, mergulhou de cilindro pela primeira vez na vida, na flor dos 74 anos, sentindo o corpo leve nas águas do estreito de Ormuz. De volta ao Rio, levou um tombo na Rua da Assembleia e se estropiou. Também passou há pouco por uma cirurgia no fígado – nunca bebeu nem fumou, mas adquiriu uma cirrose, talvez de tanto abusar dos ovos enterrados que comia na Tailândia. Agora, aos 78, Fernanda é obrigada a se segurar na poltrona da sala do seu apartamento na Gávea, onde deu esta entrevista. “Acho que depois que eu me separei do meu primeiro marido, esta é a primeira vez que passo tanto tempo em casa”, ela diz, gozadora.

Com os cabelos branquinhos presos em coque, o colar de pérolas, ela vai contando com voz doce um punhado de histórias de fazer o Indiana Jones tirar o chapéu. Fernanda nunca se deu tanta importância, então livro sobre sua vida, autobiografia, não fez, não. Teria de escrever vários volumes. Perdeu a conta de quantos países conheceu. É globalizada antes de nascer: em 1933 já estava em Paris, na barriga da mãe, enquanto o pai, o arquiteto Paulo de Camargo e Almeida (um dos fundadores da FAU-USP, e autor de um plano piloto para criação de Brasília com Vilanova Artigas), estudava na Sorbonne, frequentava a casa de Gertrude Stein e saía para tomar umas com o poeta Gabriele D’Annunzio.

Do pai que ela herdou a vocação para viver com o pé no avião. A psicanálise também explica. “Nunca perdoei a mamãe, que fez meu pai voltar de Paris, ela matou o sonho dele. E logo depois eles se separaram”, conta Fernanda. Não demoraria a planejar sua saída: aos 14 anos, ela viajou com as professoras e colegas do colégio para Florença, todas hospedadas num convento. No ano seguinte, convidada a acompanhar os tios para servir de intérprete numa viagem para a Holanda, Fernanda escreveu para as freiras em Florença e pediu para alugar um quarto ali. “Elas ficaram com pena de mim e não me cobraram”. Sobraram uns trocos para estudar história da arte e ir a Paris.

E havia também sua paixão pelo Oriente. Aos 3 aninhos ela andava pela casa abraçada a um disco quebrado da Tosca, fazendo cara de feliz a cada vez que ouvia o trecho da ópera com música árabe. Leu os livros de Malba Tahan, ouvia as histórias do avô viajado e da deslumbrante tia Alice (que inspiraria seu belo livro A Ponte das Turquesas, sobre Istambul), criou um mundo oriental dentro dela. Da Europa estava ali pertinho, só que a sua mãe entrou em cena e o exotismo teve de esperar. “Voltei e, não sei por que, acabei me casando aqui, e com um sujeito quadrado”.

Foi como voltar dez casas no jogo e cair no fosso do dragão: o marido, um economista tradicionalmente mineiro, não via lógica numa mulher com asas. O mais longe que ela chegou durante o casamento foi Buenos Aires – com ele junto, claro. Não podia durar. Nove anos e quatro filhos depois, lá vai Fernanda mais uma vez na direção contrária: era mulher desquitada, nos nem sempre dourados anos 60, e estava com a bagagem pronta para morar com a criançada na Toscana. A mãe a segurou de novo, alegando que a avó sofreria demais. Fernanda ficou, começou a dar aulas na universidade, mas como era formada em História pela PUC com especialização em arqueologia, logo arrumou os pauzinhos e conseguiu uma bolsa para Portugal. “Entrei para o corpo da Unesco. Ali, de uma certa forma, eu inventei essa arqueologia de comida”.

Começava, em 1970, o seu script errante. Jerusalém (“Um encantamento”), Tunísia, Egito, Trinidad e Tobago, Nepal, Japão, Índia (“Eu ia para a Índia duas vezes por ano, fui durante dez anos”). Na Jordânia escavava tão concentrada que nem ouviu os tiros. Só parou quando um amigo lhe gritou do outro lado do campo: “Fernanda, olha o bombardeio!”. Estava na China quando houve o massacre da Praça da Paz Celestial.

Quem a vê nas fotos, com um olhar de quem sempre sabe aonde vai, corpo mignon, um quê de heroína da Nouvelle Vague, não imagina aquela moça cavocando na terra com um bando de homens no sol do deserto, ou se encontrando com poderosos de vários governos, sem ouvir besteira. Bem, a cena à la Bond Girl que contamos lá na abertura do texto, diz ela, aconteceu só uma vez. Fernanda jura que nunca mais se viu numa situação de aperto, nem naqueles países que, daqui da terra dos rebolados, a gente ouve falar que as mulheres são trocadas por camelos. Ninguém a chamou para um narguilé “lá em casa” ou a mandou encarar um tanque de roupa.

“Acho que é porque sou aberta. Quando me convidaram para integrar o grupo do Projeto Himalaias, uma indiana me disse que fui escolhida porque nunca me converti a nenhuma religião, nunca tentei ser o que não era”.

Muito antes do discurso autossustentável que todo mundo hoje pronuncia de boca cheia, o Projeto Himalaias, de 1995, era um grupo multidisciplinar de cientistas que ensinava a preservar a natureza e os elementos culturais, e formava habitantes no Nepal para prolongar esse conhecimento. “Em Katmandu tínhamos o apoio do rei e da rainha, que pertenceu ao nosso conselho. Houve um golpe, mataram toda a família real, só sobrou uma tia que era meio estúpida, e uma parte dos nossos arquivos sumiu. Não dava para continuar”, ela conta. Criou, então, um projeto no deserto do Iêmen. “Mas tem uma coisa que destrói o mundo chamada americano. Eles quiseram logo se meter”. Dessa passagem pelo Iêmen ela descreveria a rota do incenso e os caminhos da Rainha de Sabbah, num dos seus livros mais bonitos: As Caravanas da Lua.

Mesmo saltitante, Fernanda continuou morando no Rio. Por aqui, teve cargos importantes, foi presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro e da Fundação Estadual de Museus do Rio de Janeiro, mas o governo achava que ela dava piruetas demais para não ser comunista. Ainda por cima recebia cartas da Rússia, da Romênia… Abriram sua correspondência. Tiraram seus cargos. Cassaram Fernanda. A saída era o aeroporto, mas ela voltava sempre – tinha uma família a zelar. Os quatro filhos ficavam em casa com o telefone na mão, controlados um pouco à distância (“Ela sabia ser mãe: fazia chantagem”, brinca sua filha Andrea), um pouco pela avó e muito por um personagem essencial nessa história: o italiano Giovanni Moro. Eram amigos desde que ela tinha 6 anos e ele, 9, casaram-se com outros, e em 1973 reencontraram-se. Ela o pediu em casamento. Ele não titubeou em morar com uma mulher que viajava a cada dois meses, quatro filhos que não eram os seus, e uma sogra no pacote.

Um romance com final feliz: quase quarenta anos depois do sim, continuam trocando olhares carinhosos aqui na sala de casa. Publicitário, ex-dono de uma livraria no Leblon que comprou do pessoal do Pasquim, o charmoso Giovanni, 81, é só elogios para ela (“É a mulher que se veste mais rápido do mundo, não se pinta, a vaidade dela é mais pelo orgulho do que ela já fez”). Entendeu que o melhor jeito de segurá-la era deixa-la ir. “Como ter ciúme, se a Unesco precisava dela, as pessoas a queriam, com que direito eu impediria Fernanda de ser quem é?” Fernanda emenda: ela é quem tinha ciúmes. “Podia estar em qualquer lugar que dava um jeito de telefonar para ele”.

Andrea, a filha, traz os cadernos de viagens com os lindos desenhos de Fernanda, registros que ela nunca mostrou nem nos livros. Giovanni insiste que ela deveria fazer uma autobiografia. “Ela está liberada até para contar os eventuais romances que possa ter tido, porque agora tudo é história”. Fernanda sorri – fala às vezes “quando eu viajar de novo”, ou “quero voltar para Istambul”, diz que chora de saudades dos netos (dois dos filhos de Fernanda moram em Paris há mais de vinte anos). “Fui a última vez para Paris em 2008, mas agora tô nessa poltrona, vou ver quando posso ir”. Giovanni observa sua mulher finalmente em casa e acena um sim, porque o mundo gira depressa e um pouco mais de amor só pode fazer bem.