Requisitada

“Tá requisitaaaaada” – era assim, esticando as vogais, a voz rouquinha do cigarro, que a Marta, minha colega de internação no hospital psiquiátrico, reagia toda vez que chegava visita para mim, ou alguém me chamava ao telefone. Eu tinha 19 anos, estava na faculdade de jornalismo, adorava dançar, falava pelos cotovelos, vivia com montes de amigos. Vista assim de fora, acho que eu parecia bem normal, só ria demais, a pressa de não perder a piada, de vez em quando lágrimas demais, talvez indício de que tinha uma alma alvoroçada ali. A Marta, já uma senhora de uns 60 anos, que morava lá com suas camisas coloridas, leveza e raciocínio de criança, sem querer matou a charada. Tudo o que eu queria na vida era ser requisitaaaaaada.

Era também uma razão por eu ter parado ali: a incontrolável vontade de ser aceita.

Lá pelos meus 13, 14 anos que a coisa começou. O corpo de repente sobrando, a dificuldade de ser menina, quando nada cabe, na-da, a pele é curta, tudo é problema, tu-do. Os quilinhos a mais (e eram inhos mesmo, nem realmente gorda eu fui) escorregavam um tanto na barriga, outro pelas coxas, o cérebro e a alma não davam conta do que aparecia no espelho. Doía esquisito. A certeza de ser a criatura mais horrenda do universo. Só podia haver uma solução: emagrecer. Mas comer era bom e, naqueles dias que a escuridão do mundo esmaga a gente, comer era mais do que isso, era essencial. Comer até machucar. Fui tomando remédios, muitos, cada dia mais, para eliminar o peso todo, o peso de ser uma menina que não cabe em nada nem em lugar nenhum. 

Não é que deu certo? A cintura afinou, flutuava de tão levinha, a felicidade de quase sair voando, de me sentir olhada por quem nunca me enxergou antes. Acabaram de inaugurar minha passarela. Chato é que o buraco escuro não sumiu, não sumia nunca, era o poço da Alice, sem saída. Mais comida. Mais remédios. O corpo sofria, falhava de vez em quando, mas jovenzinho, se ajeitava, e emagrecia mais a cada dia. Eu amanhecia chorando e anoitecia dançando, como o brotinho descrito por Paulo Mendes Campos. 

44kg, 1,68m. Era preciso fazer algo. A mãe pedia, tentava entender, chorava. O pai não sabia o que dizer. O médico propôs: você tem de ser internada num hospital – ou médico ou psiquiátrico – para parar com isso. Nem tinha nome a minha condição. Só mais tarde seria batizada como bulimia. Eu, que fazia teatro amador, escrevia, botava fantasia em tudo, pensei que quinze dias na clínica psiquiátrica não me fariam mal, e imagina depois quantas estórias para contar. Os médicos, porém, não ouvem uma menina de 19 anos. Não acreditaram a quantidade de remédios que eu tomava. Tiraram todos de uma vez. Meu corpo inchou tanto que tive edema cerebral. Então eu fui ficando. Fui ficando.

Requisitada eu era. Não tive um dia na clínica sem amigos por perto, mãe e pai, namorado. Também gostava de tentar entender o que se passava com os outros pacientes e se eu era mesmo tão diferente deles. A Marta, que dizia “eu sou pop” e, sem ser capaz de encarar a vida adulta, foi abandonada pela família rica. O Sidney, grandão e bobo de assustar, a gente corria dele. A freira de quem não lembro o nome e tinha o corpo todo queimado por cigarros, gritava sempre, desesperada. A Ramona, olhar perdido, não podia ver um homem que se masturbava na frente de todo mundo. A minha vizinha de quarto que era amarrada na cama para não se cortar. E o elenco clássico de alcoólatras, drogados, esquizofrênicos, as dores profundas que os mais sensíveis não conseguem disfarçar. Muitos desconfiavam que eu era uma espécie de agente dupla para espioná-los, porque eu falava pelos cotovelos, ria, não tinha crises evidentes (sentia vergonha de chorar vendo pessoas com problemas tão graves). É que o meu demônio pessoal não queria confusão, seu plano era ficar bem escondido.

Quando o tédio grudava no ar, eu inventava novela de rádio, show de calouros, qualquer coisa para animar o ambiente. Depois que eu saí, pensei em voltar como voluntária, manter as cantorias, as histórias contadas em roda. Não consegui. Guardei por anos o livro do Oscar Wilde que um paciente me deu com dedicatória apaixonada – um dia ele me viu cortando o bife de outro que estava com a mão engessada e na mesma hora deu um soco na parede do refeitório para quebrar sua própria mão também. Tenho lembranças boas, às vezes bate saudades da Marta, ela deve ter morrido há anos, o hospital fechou, no lugar acho que fizeram um motel. Sarei da bulimia – não na hora, só dois anos mais tarde, quando engravidei e o desejo de ter uma filha saudável me fez outra pessoa. Ser mãe salvou minha vida. 

Nunca mais engordei, papo todas as comidas com gosto, continuo risonha e franca, mas fiquei com sequelas até hoje. O corpo com problemas crônicos de saúde, e, o mais difícil, vira e mexe escorrego feio na imagem que tenho de mim. O que me pesa agora não são os quilos, mas os anos. Encarar a realidade ainda não é o meu forte, e admito, quero é ser requisitaaaada. Não sei explicar o que se passa, deve ser a escuridão que nunca vai embora de vez. O jeito é encher minha labradora de beijos, me declarar para quem gosto e, quando não dá certo, chorar no cantinho. Amadurecer é esquisito, mas um pouco mais de amor só pode fazer bem.

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