SABINE LOVATELLI – Valor Econômico

 

A história impressionante de Sabine Lovatelli, a mulher que criou e dirige o Mozarteum Brasileiro, que está completando 30 anos

Cris Ramalho

O fato é que foi um dia tenso em Berlim. Era 1970, o muro dividia a cidade e a história do mundo, e ali na fronteira os russos carrancudos do lado oriental invocaram. Algo estava errado com o passaporte do sujeito brasileiro, de nome italiano, que tentava passar despercebido no BMW, uma alemãzinha linda no banco ao lado, o sorriso despreocupado. Ele, Carlo, 25, gastou o inglês para explicar que só dava uma carona à moça, nem a conhecia. Não colou. Ficou isolado numa sala com uns oficiais. Ela, Sabine, 22, em outra sala distante. Perguntas iguais aos dois. De fato, se conheceram na véspera, jantar de amigos, e só foram parar naquele carro porque Carlo achou que Sabine era uma graça e quando soube que ela ia a Berlim inventou que também estava indo para lá, “será que ela não queria carona¿” Ela cintilou. “Claro que aceito”! Agora estavam presos na fronteira entre as duas Berlins.

Cinco horas depois, Carlo mentindo até não mais poder, os russos já sem paciência, quando Sabine, esperta, desmaiou, fingindo doença. Os oficiais não resistiram à fragilidade da mocinha, deram comida para ela e liberaram a dupla. “Uma semana depois, nós decidimos nos casar, minha mãe adorrrou ele, meu irmão também”, conta hoje Sabine Lovatelli, 63 anos, riso de menina e o sotaque eterno, nesta entrevista no seu luxuoso apartamento nos Jardins, em São Paulo. Se a coisa mal começou e já era animada assim, só poderia dar certo. Os Lovatelli nunca mais se separaram. Chegaram ao Brasil em 1971, ditadura militar no auge. Dez anos depois Sabine criaria o Mozarteum Brasileiro, que há 30 anos vem trazendo o fino da música clássica internacional para o Brasil.

Nesta semana, para comemorar o trigésimo aniversário, a programação do ano foi aberta na Sala São Paulo com o conjunto L’Arte Del Mondo. Nesses 30 anos, o Mozarteum Brasileiro, montado à semelhança do Mozarteum de Buenos Aires, acabou apresentando mais de 600 atrações internacionais e 360 brasileiras. Entre os estrangeiros, nomes da estirpe de Claudio Abbado, Zubin Mehta, Oscar Peterson, Daniel Barenboim, Lorin Maazel, as irmãs Labeque, um sem número de solistas, regentes, os grandes que brilham nos Estados Unidos e Europa. Todos ficaram grandes amigos de Sabine. Alguns acabam se hospedando no seu apartamento nos Jardins, em São Paulo, onde mudam o piano de lugar, ou relaxam de chinelos e caipirinha na mão na casa dela em Trancoso.

Ela se sente igualmente em casa entre músicos, faz o mesmo roteiro deles, um dia em Nova York, outro em Milão, o telefone toca e lá vai Sabine para Paris, Salzburg, Londres. É como se fossem de uma mesma turma, e de certa forma foi o que acabou acontecendo. Claudio Abbado, por exemplo, um dos maiores maestros de todos os tempos, é o melhor amigo dela. Veja essa: um dia Sabine estava na casa dele na Sardenha, os dois descalços, com o maiô pingando depois da praia, quando ele pede que ela fique ali porque chegariam dois japoneses. “Eles chegaram de manhã, naquele sol, de terno preto, super formais, eram enviados do Imperador, estavam concedendo a maior honraria para o Abbado. E eu descabelada, de maiô”, ela conta, a risada gostosa.

De outra vez, ela quis trazer o pianista Oscar Peterson para cá, fascinada com seu jazz sofisticado e também porque precisava de um músico canadense para um evento. “Liguei para o Norman Granz, agente dos músicos de jazz, um homem adorado por todos porque defendia os músicos negros, fez grandes coisas para acabar com o preconceito, dar dignidade a eles”. Norman disse não, a conversa esticou, ele se convenceu, Oscar veio. Tempos depois, ela quis Miles Davis e o próprio Norman lhe convenceu a desistir, o homem era complicado. Norman e Sabine ficaram amicíssimos, trocavam cartas, telefonemas, mas nunca se viram. “Ele escreveu na biografia dele que não se conformava que nunca me encontrou”.

Taí o grande trunfo de Sabine Lovatelli, e a razão pela qual ela é a alma, a essência do Mozarteum: uma combinação do ouvido e olhar apurado para a música, a determinação de alemã que não se deixa dobrar, e sua elegância natural, sem deslumbre. Sabine, nascida numa cidadezica junto de Hannover, é boa de lábia em alemão, inglês, francês, arranhando o português. Simplesmente pegava o telefone, pedindo ajuda de empresários, ou propondo a agentes internacionais que trouxessem seus músicos, suas orquestras para o Brasil. Bom, eram outros tempos, e ela estava na tal hora certa, lugar certo. Carlo, seu marido, grande executivo (hoje ele preside a Abag, Associação Brasileira de Agribusiness), linhagem nobre (filho de mãe inglesa e pai conde italiano), era bem relacionado. Isso ajudava Sabine pelo menos saber quem tinha o telefone de quem.

Sabine conta que queria que os brasileiros apreciassem música clássica como ela na infância, quando aquilo era parte do seu dia a dia. Vive por esse gosto musical desde os 10 anos, quando um amigo da família, barítono, puxava a pequena Sabine pela mão para assistir as óperas lá do backstage. “Nunca toquei nada, mas me apaixonei por óperas ali. Mais tarde, na escola, as alunas eram obrigadas a assistir a um programa cultural por semana, e eu sempre escolhia ópera. Fui formando meu gosto, e queria que os brasileiros pudessem ter acesso a isso, a acompanhar a música clássica”, diz ela. Nesses 30 anos, levou os concertos do Mozarteum a mais de 1,7 milhão de espectadores, e se orgulha que mais da metade desse público viu tudo isso ao ar livre, de graça, no Parque Ibirapuera.

Para completar, tem o toque de lenda particular: Sabine é quase uma Forrest Gump, e as pessoas e histórias, aparentemente, caíam no seu colo, e foram moldando sua personalidade tem-jeito-para-tudo. Se você é do tipo que acha que sua vida daria um livro, deveria antes dar uma espiada na vida dela. Vamos voltar no tempo e contar só as mais relevantes: lá pelos 20 anos, Sabine quis morar sozinha em Paris. “Cheguei com as barricadas de 1968, uma confusão, uma alemã na minha idade ali não seria bem vista”. Mudou-se então para Londres, mas a Inglaterra não permitia empregos a estrangeiros, e saída foi se mandar para a Irlanda. Deu de cara com a guerra civil. “Estava num hotel em Belfast, e me dei conta dos conflitos com o IRA nas ruas, fiquei com muito medo. Botaram os hóspedes para fora dizendo que tinha uma bomba lá”.

Era hora de começar nova história. De volta a Hannover, conheceu Carlo, o resto você já sabe. Mas nem tudo foi harmonia nesse longo script: em 1996 ela descobriu ter câncer, já espalhado pelo corpo, e em estado terminal, quase sem esperança, Sabine entrou num protocolo médico em Nova York. “Eram 40 pacientes, eu fui a única a ser curada”, conta, emocionada. Fez cinco transplantes de medula em quatro meses. Dois anos depois, a doença voltou, ela repetiu o tratamento, e quem a apoiou, muito, foi Claudio Abbado. “Logo depois ele descobriu que tinha câncer também, e eu fui para a Sardenha ficar com ele e a família”.

O que mudou com essa sacudida na vida¿ “O Mozarteum sofreu um pouco, porque fiquei sem poder cuidar da programação, e as pessoas que me ajudam lá são ótimas, mas não têm os meus contatos, foram tempos mais frágeis”, ela diz. Assim que Sabine e Mozarteum recuperaram a boa saúde, eis os projetos a todo vapor. “Quero cada vez mais investir em educação, já levei 30 bolsistas para escolas na Europa, os músicos que tocam no Mozarteum fazem masterclasses com alunos brasileiros, e quero fazer um festival de música clássica em Trancoso, numa área do Clube Med”, diz ela. Agora está empenhada em apoiar a Orquestra Juvenil da Bahia, regida por Ricardo Castro (com músicos de 12 a 25 anos, baseadas no El Sistema venezuelano). “Quando fazemos trabalhos com músicos de comunidades carentes, faço questão que eles passem pela mesma seleção dos outros, eles precisam competir, entrar no mundo real”, fala Sabine, firme como nunca. Vai ser alemã assim na China!

11 Comentários (+adicionar seu?)

  1. Florivaldo Menezes, poeta, pai do músico Flo Menezes
    fev 09, 2012 @ 01:21:24

    Não conhecia sua estampa. Só sua heróica trajetória, fibra.e importância histórica.
    Esta semana vi um papo com Salomão Schwarstman na Band News e fiquei fascinado com sua beleza sessentona, moleza no sex appeal (realmente excitante), charme, domínio do silêncio, sabedoria, equilíbrio e modéstia.
    Alguem já lhe fez a biografia?!

    Responder

  2. Márcia Braga
    maio 27, 2012 @ 21:55:14

    Sabine, estou encantada com tua existência! Adoraria poder lhe perguntar se você pode me ajudar a fazer justiça para que o mundo reconheça devidamente um gênio, absurdamente ainda quase anônimo, da música para o violão, o maravilhoso compositor e violonista baiano Geraldo Ribeiro…

    Responder

  3. Antônio Oliveira
    abr 13, 2014 @ 17:54:57

    Condensa Sabine Lovatelli
    Fiquei feliz em descobrir esta página na internet e conhecer um pouquinho da sua trajetória. A senhora não se lembra de mim, mas eu a conheço há alguns anos, desde quando eu fazia manutenção nos equipamentos telefônicos do Mozarteum Brasileiro na Av. Faria Lima.
    Meu nome é Antônio Oliveira (Oliveira) folhetim2007@gmail.com

    Responder

  4. sueli vieira rodrigues
    maio 09, 2014 @ 12:33:23

    Sabine e carlos .Que as asas do anjo os abrigue e sol da bahia os aqueça sempre. Amei o festival de musica de trancoso.é um presente unico para alma das pessoas que não existe $ que compre.

    Responder

  5. Hans-Peter Otto
    jan 23, 2015 @ 15:33:29

    Liebe Sabine, lieber Carlo-
    viele Jahre sind vergangen und in Gedanken bin ich noch sehr oft in Brasilien.
    Immerhin nun mit 76 Jahren, aber bei guter Gesundheit und noch voller Pläne
    wünsche ich euch beiden alles alles Gute und vor allem natürlich Gesundheit, Erfolg und weiterhin viel Lebensfreude.
    Herzlichst
    Hans-Peter

    Responder

  6. Maria de Lourdes Mendes Carneiro- Pinheiro Franco
    jun 03, 2015 @ 17:43:35

    Graças a DEUS e a Sabine Lovatelli temos o Mozarteum Brasileiro para nos orgulharmos e agradecer !

    Responder

  7. Flávio Pinheiro
    jun 04, 2016 @ 20:57:15

    Que história linda, linda

    Responder

  8. Lia
    jun 18, 2016 @ 12:03:08

    O Brasil e a música agradecem.

    Responder

  9. Liana
    jan 05, 2017 @ 08:53:32

    Beste Sabine,

    Zufällig sehe ich Sie hier, jetzt.
    Damals habe ich Sie geschaut, begeistert mit so viel Schönheit!
    Die wunderschöne deutsches Mädchen…
    blonde, blauen Augen, so selten damals in Brasilien!
    Beeindruckend war das für mich jedes Mal,
    dass Sie mit Ihre Schwiegermutter, die Condessa Lovatelli,
    zum Anprobe Ihres Hochzeitskleid gekommen sind.
    Ich…klein, dünn, 10 Jahre alt, an die Ecke gedrückt um Ihnen nicht zum stören…
    um vielleicht bei einer nächste Anprobe wieder da sein zu dürfen…
    Nach mehr als 25 Jahren Europas Leben lese ich jetzt über Sie, als ich über
    der Maestro Abaddo, die wir gerne hier gesehen haben, mehr lesen wollte…
    Als… noch ein sehr klein Stückes… brasilianerin… die in mir noch geblieben ist… bedanke ich mich bei Ihnen herzlich, dass Sie nach Brasilien ein bisschen mehr Kultur bringen und gratuliere ich Sie für Ihre Erfolg… wie ich lese… in Ihre wunderbare Engagement.

    Mit freundlichen Grüssen,
    Liana

    Responder

  10. Fernando (também conhecido como "Fernando professor")
    ago 08, 2017 @ 01:53:26

    Sra Sabine. Conhecendo agora essa história maravilhosa de luta, persistência, perspicácia, sinto-me extremamente agraciado por poder participar desses acontecimentos culturais que dignificam todos os amantes das artes, particularmente da música clássica. Tenha uma vida longa para permitir que desfrutemos dos melhores valores. Muito obrigado.

    Responder

  11. Roberto G. Giarola
    fev 01, 2019 @ 20:54:47

    Queria saber que diacho vocês faziam em Berlin Oriental em 1970? Já que até a Sabine era do setor ocidental. Nem Karajan morava na cidade, mesmo no setor ocidental, tinha um quarto fixo num hotel perto do Philharmonie. Mistério ne…

    Responder

Deixe um comentário