CONTARDO CALLIGARIS

O caçador de emoções

Por Cristina Ramalho

Cena 1: Milão, começo da década de 50. O italianinho Contardo, 9, coloca o ponto final no seu conto, O Homem do Pacífico, uma história de guerra. Então bota o texto no envelope, lambe o selo e endereça-o para o Corriere dei Piccoli, jornal semanal dirigido às crianças.

Cena 2: Londres, seis anos depois. Contardo, 15 anos, desembarca na cidade. Saiu de Milão, avoado, coração batendo de incerteza e saudade de casa, como se fosse fugir com o circo. Fugiu, mas foi é atrás de uma moça canadense.

Cena 3: São Paulo, não faz muito tempo. Contardo, passado dos 50, belo currículo como psicanalista, abre uma das caixas que carrega na sua vida de cidadão errante. Encontra fotos dos pais – a mãe, morta em 94; o pai, em 95; – relembra uma conversa em que o pai revela que foi pintor em outra vida e decide escrever um romance.

É tudo verdade, mas pode ir sentando na poltrona e pegando a pipoca porque a vida real do psicanalista Contardo Calligaris, 59, é boa de contar em ritmo de aventura. Por trás daqueles textos sempre lúcidos, bem escritos, em que ele comenta os mais variados temas na sua coluna na Folha de S. Paulo, está um sujeito que, feito um arqueólogo de filme, saiu pelo mundo disposto a descobrir histórias. Afinal, a primeira que ele inventou, aos 9 anos, numa Itália tentando ser feliz no pós-guerra, foi recusada por um jornal. O jeito era ir atrás das próprias emoções. E elas vieram. Tão intensas como as moças que as inspiravam.

Em Londres, o dinheiro não dava para viver com a namorada. Surgia sua vocação para mergulhar no inesperado. Lá vai Contardo trabalhar como Sansão num show de strip-tease no SoHo, versão com pimenta de Sansão e Dalila. Aos 19, de volta a Milão, ele se casa com uma atriz e modelo americana, tira muitas fotos dela, acaba virando fotógrafo e tradutor de livros policiais. Segue para a Índia e Nepal, aí faz a mala para Genebra, onde estuda letras, filosofia e epistemologia. Um dia lê um cartaz que oferece bolsa de estudos para quem luta boxe. “Lembro até hoje do cheiro do ringue, impregnado de suor, dos homens que lutavam para subir na vida”, diz ele, que por sinal se mostrou bom direto no queixo: foi campeão suíço, peso-leve,62,5 kg. Mas o que bateu nele foi aquela inquietação outra vez.

Toca para Paris. Em 1975 ele se torna psicanalista na França, é amigo de Roland Barthes e Lacan. Intrépido, intelectual e ainda por cima com estampa de galã, não demora a aparecer outra moça no seu script: uma vietnamita do Sul, fugida dos horrores da guerra do Vietnã, que iria sacudir todo o jeito de pensar de Contardo – e vai inspirar novo livro, aliás.

Quer saber mais histórias, em Nova York, São Paulo, Siena? Então se ajeite na poltrona, que isso aqui foi só um trailer. Contardo contou muitas outras à Revista da Cultura numa animada entrevista no seu consultório, um flat nos Jardins, em São Paulo. “Gosto porque nesse flat mora e vem todo tipo de gente”, brinca o psicanalista, olho aberto a todas as situações, em busca das escolhas livres.

Escolheu agora mais uma carreira, a de romancista, com o lançamento de O Conto do Amor, thriller policial a partir de um fato autobiográfico: um dia seu pai lhe contou uma história que tinha sido ajudante do pintor Sodoma, perto de Siena, Itália, no século 16, e como prova era só ir à igreja Monte Olivetto Maggiore e constatar que ele havia pintado o próprio rosto num dos personagens do afresco: o de São Bento. Contardo foi até Monte Olivetto, e viu mesmo o pai nas pinturas. Até essa parte, é verídico – daí em diante, o livro entra na ficção. Como tudo o que ele escreve, real ou fantasia, é no fundo um convite para a gente descobrir, do nosso jeito, amor e aventura na vida.

Pequenas e grandes descobertas

“Cheguei num momento em que estava na hora de respeitar o desejo antigo de escrever. Nos próximos 10, 15 anos produtivos que me restam, quero ser escritor”, antevê Contardo. É dedicado: O Conto do Amor foi escrito em português e inglês, praticamente sua língua materna. (Aqui cabe explicação: Contardo foi alfabetizado em italiano, mas também em inglês por uma freira britânica, aos quatro anos. Pediu para aprender a língua das músicas americanas que todo mundo escutava na Itália). Então, na hora de fazer o livro, ele escrevia um capítulo em português, depois outro em inglês, fez uma versão inteira em português, outra em inglês, e foi ajeitando. “A gente não pode se traduzir, senão se trai, mas essa alternância foi muito divertida, uma maneira de revisar o texto, mudava a estrutura narrativa com as diferenças de língua. A versão em inglês está em Nova York, com meu agente, para ser editada lá”, diz.

No livro tem mulher amada, investigação do passado e a busca de um sentido na existência. É que a narrativa ficcional funcionou igual psicanálise: Contardo puxou um fio solto da própria vida e inventou as histórias possíveis. Repertório, a gente já percebeu, nunca faltou para ele – mas para entender como o psicanalista se transformou no escritor, vamos fazer um flashback e voltar às suas aventuras de verdade. Mais precisamente, vamos começar desde quando ele estudava psicanálise. Imagine Contardo de cachecol, 20 e poucos anos, gente de todos os tipos, garotas liberadas.

Estamos em Paris, década de 70. Ideias brotavam em cada café da esquina. Contardo já tinha muitas e todas de fina estirpe. Havia estudado numa fase privilegiada em Genebra, onde debatia com alma e profundidade em seminários com grandes pensadores. Dois lhe marcariam para sempre: a filósofa Jeanne Hersch (“Quem mais me abriu o mundo”) e o mestre em literatura medieval Roger Dragonetti (“Entrei na sala de aula, esse homem, fumando sem parar, começou a falar sobre história medieval, as catedrais, a vida das pessoas, e tudo isso se misturava e tomava sentido de uma forma”). Acontece que eles eram chegados na direita, e naqueles tempos, numa Paris ardendo pós-barricadas, ter esses mestres como formadores, não cabia. Legal era ser gauche na vida. Contardo entendeu. “Tem um lado da direita que é alérgico à autoridade, um liberalismo com parentesco com o anarquismo. E meu fundo político é anárquico. Se eu fosse soldado, seria um franco atirador”, adverte.

Assim avesso a crachá, agremiação, carteirinha, ele ia fugindo, soltinho da silva – como até hoje – das turmas, das regras, do mundo acadêmico, de qualquer clube que o aceitasse como sócio. Viveria por um bom tempo em Paris, se bem que foi ali que tomou uma tremenda rasteira ideológica. E descobriu um mundo novo.

Sem destino

Nos primeiros anos em Paris, ele rodou muito de mãos para cima e rosto indignado, protestando contra a Guerra do Vietnã. Entre um “go home, yankees” e outro, Contardo espiou de rabo do olho e se encantou por uma vietnamita do lado Sul na geografia. Ou seja, do lado errado da história. Você já deve saber, mas não custa repetir: os americanos apoiavam o Vietnã do Sul, pró-capitalista, e combatiam os vietcongs do Norte, comunistas. Como todas as pessoas de paz e bom senso do mundo ocidental, ele queria que aquela guerra injusta acabasse. Acontece que para o povo do Sul, tal qual sua namorada, a vida ficou insuportável quando o comando comunista do Norte venceu. Ela viu a família inteira morrer na guerra e, absolutamente sozinha, foi parar na França. “Então eu me dei conta que durante sete anos lutei por uma causa sem pensar no sofrimento das pessoas do outro lado”, diz ele.

Contardo ainda não sabia, mas anos depois iria conhecer outros vietnamitas nos Estados Unidos, assim como se aproximaria da comunidade de iraquianos, que acharam melhor imigrar para a América a ficar na Bagdá ocupada. Também não podia adivinhar que faria dos Estados Unidos outra longa morada, e se identificaria com tantas coisas da cultura americana. Está certo, o nosso psicanalista confessa, com orgulho, que sabe cantar My Fair Lady de cor. Mas na América o sentimento bateu: ele se reconheceu no olhar dos imigrantes, de quem sai atrás dos sonhos. Agora, o que Contardo nem sonharia é que de lá baixaria ainda mais no novo continente, atracando finalmente aqui no nosso Sul maravilha. Primeiro, em Porto Alegre. O motivo da vinda, de cara, foi o lançamento de um livro. O da permanência, é claro, foi uma bela psicanalista gaúcha.

Para os Estados Unidos, o que o levou de primeira foi um convite para lecionar literatura e pintura do final do século 19 na universidade de Berkeley, na Califórnia. Contardo tinha publicado, em Paris, o livro O quadro e a moldura, sobre a pintura daquela época. Foi, viveu em Nova York e Boston, e por anos, já no Brasil, lecionou em outras universidades americanas e atendeu pacientes nas duas cidades, em São Paulo também, tudo ao mesmo tempo. Sua vinda ainda rende história para uns bons roteiros: escreveu livro, foi citado por Caetano Veloso, virou colunista da Folha, suas colunas saíram em livro, escreveu outro sobre adolescência, faz muitas palestras, é elogiado por gente finíssima. E continua galã.

A arca perdida 

Um dia Contardo abriu uma caixa. Como já morou em tantas cidades, ele carrega de um país para outro algumas caixas com pedaços de memória, fotos de família, documentos de infância, uma biografia dispersa que se cair do caminhão de mudança vai embora com o vento. Encontrou o manuscrito de um romance que ele escreveu aos 19 anos, jovem o bastante para saber de tudo. Não quis reler. Lembrou da mãe, fotos dela magrinha, jogando tênis, pensou no pai, o rosto angelical na foto, teve a idéia para O Conto do Amor.

Numa licença poética, deve ter lembrado daquele conto de menino, das coleções de livros semanais que ele adorava: tinha a Giallo (“É amarelo em italiano, a gíria para policiais”), nome que virou estilo literário, de livros policiais. E tinha a Urania, a coleção de ficção científica. Lembrou também do livro que mais lhe marcou na juventude: Um coração nas trevas, do inglês Joseph Conrad, tão fundamental na busca por um sentido, no jeito de narrar a angústia. Contardo pensou que a vontade de ser escritor era irresistível demais para ficar desperdiçada, ainda mais com tanto a dizer. Some-se a isso que hoje a rotina dele é mais organizada, mora perto do trabalho, lê muito, sempre – a Folha e o New York Times todos os dias, mais a New Yorker, a Piauí, ensaios, livros de escritores contemporâneos brasileiros e americanos – e está feliz, vivendo com o único filho, Max, de 26 anos, outro viajante além-fronteiras.

O próximo livro já está engatilhado: ele vai partir da história de amor com a vietnamita para criar sua nova ficção. Ser escritor de romances, para Contardo Calligaris, já é uma realidade desfrutável. A disposição de encarar livremente o que quer fazer da vida é que é o bacana dessa – e de todas as aventuras.

2 Comentários (+adicionar seu?)

  1. esequiel
    ago 25, 2015 @ 14:44:21

    Cris, vc tem o contato do Cotardo?

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