ANDY SUMMERS – Valor Econômico

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Por Cristina Ramalho

Por trás daquela cara de inglês típico do guitarrista Andy Summers se esconde uma alma carioca da fase dourada do Rio, ali pelo início dos anos 60. Não é só porque ele gravou o DVD United Kingdom of Ipanema com Roberto Menescal, ou porque compôs uma bossa nova nos seus tempos do Police que virou hit, Roxanne. Desde o dia em 1959 quando, aos 17 anos, Summers assistiu Orfeu do Carnaval no cinema de Bournemouth, cidade onde cresceu, a música brasileira abriu um sol no coração do inglês. “Luiz Bonfá, Tom Jobim”, ele repete, sotaque britânico, os autores da trilha do filme. As canções, a história, aquele país exótico chamado Brasil, tudo era sua praia.

Summers era um garoto de gostos modernos como eram aqueles rapazes mais velhos de Ipanema que estavam lançando uma música com tanto charme, tanto suingue. Poderia ter sido amigo de Tom, Bôscoli, do próprio Menescal, do Vinícius, e tomar umas no Jangadeiro, acenar para a Nara Leão, ouvir um som no Beco das Garrafas. Assunto não iria faltar. Falariam das mesmas coisas que ele adorava: o jazz, o cinema europeu, os retratos em preto e branco, o interesse por poesia e artes plásticas, e, claro, umas garotas. Com Tom Jobim, o bate-papo de chope na mão seria sobre um ídolo em comum: Villa-Lobos. “Toco Villa-Lobos sempre, posso tocar todos os dias”, Summers diz.

Mas o jovem inglês não veio para Ipanema. Atravessou o mar para ancorar em outras praias: as da Califórnia. Estudou música em Los Angeles, formou-se na California State University na década de 1970, e aliás é na Califórnia que vive hoje. O que ele ainda não sabia é que o amor por Villa-Lobos e pela bossa nova seria responsável por um dos encontros fundamentais da sua vida. Foi sobre o compositor brasileiro que Summers conversou, em Londres, no dia em que conheceu outro inglês e descobriu uma alma gêmea musical: o baixista Sting.

“Sting amava Villa-Lobos, assim que a gente se conheceu fomos tocando a música dele, de Bach, e jazz, e falamos de bossa nova, um olhava para o outro e yeah!, imediatamente tivemos uma conexão. Sabe, é essa a razão do sucesso do Police: nós três (eles e o baterista norte americano Stewart Copeland) tínhamos muito conhecimento musical, sabíamos de música clássica, viemos de outras bandas, era um outro background. Somos músicos, não apenas roqueiros”, Summers explica nesse almoço com a reportagem do Valor, no elegante restaurante Piselli, nos Jardins, horas antes de ele embarcar para Belo Horizonte, última cidade da turnê que vinha fazendo com o baixista Rodrigo Santos, do Barão Vermelho, um dos seus muitos amigos brasileiros.

Já estava animado de rever a amiga Fernanda Takai (com quem fez o álbum Fundamental, em 2012), ouvir Milton Nascimento e visitar Inhotim. “Levei um bom tempo para entender Minas Gerais, é tão diferente do Rio”, ele diz, totalmente em casa no nosso país tropical. Mais de 50 anos depois daquela tarde vendo o Orfeu do Carnaval, Summers é hoje um cidadão half Brazilian, vem para cá quase todos os anos, tocou com o Gil, escutou samba de Noel Rosa, acha o som do Pixinguinha “uma alegria”. Só falta aprender português e batucar um sambinha na caixa de fósforo.

Pouco antes do almoço, enquanto esperávamos na mesinha junto ao bar, a assessora de imprensa havia advertido que ele não queria falar sobre The Police, a banda que durou apenas seis anos, de 1978 até 1984, vendeu mais de 50 milhões de discos e foi responsável por trazer arranjos inovadores, sofisticados, um toque de improviso jazzístico e de frescor para o rock inglês, então dominado pela cena punk. E pelas canções que boa parte do mundo sabe de cor: Every breath you take, Every little thing she does is magic, De Do Do Do De Da Da Da, e muitas, muitas outras. O tema só foi entrar na conversa depois da sobremesa, na hora do cafezinho. Summers tomava um cappuccino enquanto contava sobre suas influências, de quais artistas ele gostava quando jovem, e, bem, como não falar do Police? “Sting, Stewart, eu, nós realmente criamos um som muito especial, bordamos a música com texturas, como uma tapeçaria”, explica, trançando as mãos para reforçar o toque poético. “Começamos como punks mais por causa de Stewart e porque naquela época, em Londres, todo mundo tinha de ser punk”.

Mais detalhes sobre a vida de rock star Summers deixa para quem quiser ler a sua autobiografia, One Train Later, lançada em 2006 (o título se refere a “o encontro” que realmente mudou sua trajetória para sempre: no trem em que conheceu Stewart Copeland), e agora traduzida para o português, em edição da Ed. Neutra. Ele participou há pouco de uma tarde de autógrafos do livro na Livraria da Travessa, no Leblon. Com prefácio de The Edge, do U2, é uma história prá lá de intensa, e ser um dos maiores guitarristas do mundo é só um pedaço dela. Já começa quente: a mãe de Summers era uma cigana bonita chamada Red que trabalhava em uma fábrica de bombas durante a guerra. O pai, da Força Aérea. Andy Summers nasceu num trailer no acampamento cigano, em frente uma mulher com as mãos cobertas de anéis prevendo seu futuro no tarô enquanto ele dava a primeira mamada.

Do livro, naturalmente, saiu um filme: o documentário Can`t Stand Losing You: Surviving The Police, de 2012, dirigido pelo americano Andy Grieve. Traz imagens dos tempos psicodélicos, quando Summers tocava na banda The Animals, até o sucesso absoluto e a dissolução do Police. E a volta dos três para apenas uma turnê, mais de 20 anos depois, a famosa Reunion Tour, em 2007. Tudo com muitas fotos de Summers. Em uma cena profética, ele e Sting, cabeludos e com cara de moleques, estão dando uma entrevista e Sting, brincando, diz: “Nós vamos fazer isso para sempre?” Summers responde: “Não está no nosso contrato”.

Turnê e lançamento do livro são boas razões para ele ter vindo novamente ao Brasil, mas a principal, em São Paulo, foi a exposição das suas fotografias, chamada Del Mondo, que inaugurou a galeria Leica, em Higienópolis, e fica em cartaz até 5 de outubro. O nome é autoexplicativo: uma série de 42 fotos que Summers vem tirando por cidades do mundo todo, desde 1978, em turnês ou não. Foi no dia seguinte à abertura que almoçamos.

Éramos seis à mesa: Luiz Marinho, da galeria Leica; Luiz Paulo Assunção, seu agente há 20 anos, que também trabalha com Roberto Menescal; Silvia Balady, assessora de imprensa; Luiz Ushirobira, o fotógrafo, e esta repórter. Fazia um calor danado. Summers chegou atrasado, meio ansioso – estava antes dando uma entrevista para a TV – e, mal sentou, resolveu que não queria ser fotografado durante o almoço. Dali a pouco, mais relax diante do couvert e de um peixe defumado de entrada, abriu a guarda e um sorrisão quando a conversa começou pelo seu amor pela fotografia.

_ Algumas das suas fotos me lembraram o trabalho do japonês Daido Moriyama (o pai da fotografia de rua no Japão, faz um uso bem particular do preto e branco).

__ Sim, sim, Daido. Falo pouco dele porque pouca gente o conhece. Eu o admiro demais, é um dos meus grandes ídolos. Sabe que eu estava num workshop de fotografia em Tóquio, uns anos atrás, e me apresentaram o Daido. Ele não falava inglês, conversamos com um tradutor, e era muito gentil. Fomos todos jantar num restaurante em Shinjuku, depois nos despedimos, eu estava tão feliz que virei a rua, peguei a câmera e fui tirando fotos. Ele fez o mesmo, vindo do outro lado. Na esquina, esbarramos um nas costas do outro e gritamos Ahhh!!!, uma comédia”, ele conta, rindo.

Assim como Daido, Summers sai com a câmera por aí, à noite, registrando instantes de beleza, solidão, isolamento. Atento ao espontâneo. Faz isso quase como um espião, sem ser percebido. “Entro num ônibus, ou estou na calçada, no bar, boto a câmera aqui (simula o gesto, como se ela estivesse debaixo do seu braço), viro, disfarço, me escondo”. Invisível que retratou um japonês largado no trem, um garçom carregando a bandeja cheia de pratos como se carregasse o peso do mundo, um velho oriental na barraca de quinquilharias. Em várias imagens não se vê os rostos, mas se adivinha a angústia: é o detalhe da mulher acendendo o cigarro, ou a garota de costas segurando o disco de Elvis. Um clima em PB que lembra as telas em cores densas de Edward Hopper.

Ele já tirava fotos desde menino, na Inglaterra, quando, aos 14 anos, trabalhou num antigo resort em Dorset onde haviam morado Mary Shelley e Robert Louis Stevenson, fotografando na praia os turistas de sorrisos posados e sorvete na mão. Naquele tempo nem ligava para a câmera. Queria as moedas. Porque no fim do dia, abria a mochila e tirava dela um catálogo de guitarras Gibson, com fotos de grandes guitarristas – e sonhava com o momento em que pusesse as mãos em uma.

Só comprou sua primeira Leica em 1978, durante uma turnê do Police, e foi retratando os passos da banda, os fãs, os hoteis, as limousines, Sting fazendo a barba, e também pessoas anônimas, prédios, ruas, estradas, revelando uma America com profunda melancolia, olhar muito inspirado pelo trabalho do genial fotógrafo suíço Robert Frank. Publicou dois livros de fotos das tours com o Police: Throb, em 1983, e I’ll be watching you: Inside The Police, em 2007 (com fotos de 1980 a 1983).

“Fotografei muito a América na década de 1980, e hoje revendo as fotos fico chocado, parecem muito velhas, um passado distante. O que eu fiz é o documento de uma época que não existe mais. Não tinha Starbucks, não tinha ninguém com Iphone. Aquela América acabou”, ele conta. A geração de Summers cresceu sonhando em botar o pé na estrada como Jack Kerouac e curtir a vida adoidado feito os beatniks. Anos mais tarde, já famoso, Summers conheceria pessoalmente o mito William Burroughs. Foi convidado para compor a trilha do filme Junkie (baseado no livro do escritor beat), que não aconteceu.

_ O que achou do Burroughs?

_ Um cadáver. Ele não abriu a boca nenhuma vez. (faz uma cara engraçadíssima de velho decrépito)

Allen Ginsberg, o papa dos poetas beats, também não lhe causou boa impressão. “Arrogante demais”.

Estamos falando por um tempão, o restante da mesa já nos olha com fome e quer pedir os pratos. Summers pergunta um pouco sobre o que tem, dizemos que o Piselli tem culinária internacional, mas é um restaurante italiano, as massas são a atração. “O que tem de pasta?” O garçom traz o cardápio em inglês, todos palpitamos sobre os pratos, ele acaba escolhendo o ravioletti di formaggio boursin al pomodoro e basílico. Para a repórter, pesce al forno con zucchine. Os demais vão de ravioli di brie e pere alle erbe, filetto di manzo al gorgonzola e pere al vino tino, spaghetti al frutto di mare. Nada de álcool. Águas e cocas para todos.

Se a música abriu a estrada, ele aproveitou para descobrir o mundo. Fazendo fotos ou simplesmente conversando onde chega, quer sempre aprender sobre os lugares, pergunta da política, tenta entender a cultura, se entrosa com os locais e dali a pouco já é brother, tocando junto ou comendo com os novos amigos. “Não acho graça em ficar trancado no hotel vendo TV, não quero ser ignorante”.

No Paraguai, por exemplo, convidado para o festival de música Encuentros de Alma, em homenagem ao grande violonista paraguaio Augustin Barrios, de quem é fã, Summers escreveu um ensaio/ entrevista emocionado sobre a música de Barrios relacionada à história política do país. Era 2004, época das eleições, e ele descrevia a sensação de estar num país ainda tentando se reconstruir quinze anos depois do fim da ditadura de Stroessner. Na China, há pouco, Summers conheceu um chinês que acabou levando o músico para comer na casa de amigos — “Uns motoristas de caminhão, gente boa”. Mostra agora no seu Ipad, na mesa, as fotos que tirou deles, durante o jantar, trabalhadores risonhos numa casinha simples em uma pequena cidade chinesa, ninguém tinha a menor ideia de quem ele era.

O ravioletti estava bom, diz, depois de comer com gosto. Sobremesas? Todo mundo na mesa sugere opções, o creme brulée do restaurante é conhecido, saboroso, Summers fica em dúvida. E o pudim de chocolate com café? O garçom, gentil, vai e volta várias vezes para atender nossas mudanças de ideia. Pedimos três sobremesas (dois creme brulées e um pudim) para todos. Summers titubeia, mas acaba dispensando a dele. Abre de novo o Ipad para mostrar “uma coisa maravilhosa”. São fotos de uma orquestra chinesa de músicos na faixa dos 80, 90 anos, tocando instrumentos medievais. Um deles tem uma expressão como se estivesse no céu, de tão encantado. “A música tem uma força”.

A primeira vez que Summers sentiu isso foi aos 13 anos, quando ligou a TV e viu o guitarrista Eddie Cochran empunhando uma Gibson. “Foi um momento de epifania, um tóing saltou da tela e inundou a sala de blues e sexo”, ele escreveu na abertura do seu livro de ensaios Light Strings (2004). A música deu todo o sentido para uma existência que não era moleza.

É que por trás daquela vida de super roqueiro típico de Andy Summers, que já vendeu guitarra para Eric Clapton, se entupiu de cogumelos alucinógenos, em Bali, com o amigo John Belushi, foi ovacionado em estádios, sempre colecionando garotas de todos os cantos do planeta, também se esconde uma outra alma, introspectiva, melancólica, solitária. Uma angústia que vem dos mares frios. A infância na cidade litorânea de Bournemouth foi difícil, período internado com o irmão em orfanato, os tempos de falta de grana e de perspectiva, a eterna necessidade de se expressar. Ele escreve, gosta de autores densos, em particular os russos “Dostoievsky, Tolstoi, Tchecov, sempre releio”; pinta, há muitos anos, e se identifica com o intenso expressionismo alemão.

Nasceu mesmo para ser músico, diz. “Achava que seria músico de jazz, ouvia sem parar Wes Montgomery, Thelonious Monk, Chet Baker, Miles Davis”. Hoje se abre para todo tipo de encontro. “Sou capaz de tocar tudo, tenho essa curiosidade intensa”. Ganhou um sem número de prêmios também em carreira solo. Quando trabalha em seu estúdio, um prédio de grandes janelas diante do mar de Venice, fica imerso por horas. “Sou disciplinado, focado”. O estúdio já pertenceu a Madonna e ao pintor Basquiat. Summers acha graça quando conto que o filme que abriu Basquiat para a música foi também Orfeu do Carnaval.

Comemos as sobremesas, ele pega a colher para provar um teco do creme brulée, pede um cappuccino. Luiz Paulo, seu agente, comenta que estão atrasados para pegar o avião. Summers começa a contar do seu mais recente disco (“É uma síntese de vários sons que gosto, tem muitas texturas, é meio experimental, mas acessível”), aí fala das suas influências, e do Police, e vai se animando. E agora a música toma de vez a conversa, é a sua praia, poderíamos começar outra entrevista, de tanto assunto. Mas está na hora. Ele se levanta, dá um abraço apertado e se despede como se a gente fosse se encontrar de novo, qualquer dia desses. Bom, daqui a pouco Summers deve estar de volta ao Brasil, tomando um ar fresco, pedindo outro chope, tocando mais uma com seus novos amigos.