Veja bem

Até que demorou para a minha visão das coisas atrapalhar a vida. Na classe eu me sentava no fundão, via tudo em panorâmica, não perdia um tiquinho da lousa, muito menos as piadas.

Aos 13, quando começam a se revelar os altos e baixos da existência, me classificaram com 0,5 grau de miopia. Óculos, não, obrigada. O que os olhos não viam ajudava a me esconder, desengonçada e rechonchuda, do foco nem um pouco amoroso dos meninos. Sem a nitidez da realidade, eu podia ser quem bem quisesse. E tudo que eu não queria era ser quatro-olhos.

Meu peso diminuiu, o grau aumentou. Diziam que bastou eu afinar a cintura para ficar metida – não retribuía aos acenos (aqui cabe defesa: antes de emagrecer, não me lembro de ninguém acenando animado para mim). Antes fosse isso, mas o fato é que eu só enxergava se a pessoa chegasse mais perto. Na dúvida, de tímida virei popular: retribuía qualquer tchauzinho, por mais na diagonal que fosse.

Mas por que não usar óculos? Veja bem, eu tinha feito esforço sobrehumano para caber no 36. Era dentuça. E ainda ia me esculachar?

Lentes de contato me davam aflição. Já crescida, os óculos só eram tirados da bolsa no teatro ou cinema. Luzes acesas, lá iam para a bolsa, de novo. Só saíam de novo para eu dirigir, o que também demoraria um bocado.

A essa altura a miopia estava pelos 1.5. Até contribuiu para um romance. Na festa apertei os olhos para conferir se aquele loiro alto que se avizinhava era bonito mesmo ou delírio pós champanhe. Ele não entendeu que eu só o olhava fixo porque não enxergava. Chegou rasgado em sorriso e na mão, duas taças. Pelo que registrei, o resto foi uma beleza.

Relapsa, sempre, larguei os óculos no carro, rolaram no chão, as lentes riscadas refletindo todo um estilo de vida: um pouco embaçado pelos anos, mas sempre enxergando luz boa lá no finalzinho. Uns sopros de anjos – via filha e marido – me convenceram a ir ao oculista, eu andava apertando demais os olhos. Exagero. O grau subiu pouco, só mais meio. E como usei pouquíssimos óculos, ainda me orgulho de posar de garota: enquanto todo mundo ao redor puxa os temidos oclinhos de leitura, eu posso me gabar de ler o cardápio em qualquer penumbra, não importa o tamanho da letra, e ainda acertar o pedido.

O doutor é um amor, me fala da Grécia, da vida, de vinhos, “continue assim que sua miopia tá boa, não precisa de óculos o tempo inteiro” – mas quando checa minha idade na ficha acha que é hora de medir a pressão ocular. Foi aí que ele mudou de tom, chamou para conversa séria e mandou para uma bateria de exames. Abre o olho para a foto da retina, estica feito tortura em Laranja Mecânica, pinga colírio, e depois outro, e mais outro. A japonesa falante me dá um mouse para apertar o que vejo nas laterais de uma tela de videogame. Luzinha em cima, luzinha embaixo, luzinhas pulando a todo momento. De repente não vem luz nenhuma. O computador não vai me enganar! Na dúvida, aperto o mouse.

Aprendo que o nervo ótico é dividido em dez quadradinhos. Nove dos meus já eram. Se eu me tratar, muito que bem. Se não, perco esse fiozinho que resta.Vou parar numa espécie de dr. House dos olhos, mas com sorrisos e bons modos. Mais exames. O House gente fina me conta que tem falha na minha genética e meus olhos desprendem pigmentos que fecham os canais. Quero sair correndo. Também não pode. “Você tem de parar com os esportes de alto impacto”.

Então me ensinam que chegou a hora de exercitar meu olhar. Ampliar meus horizontes: admirar o por do sol, espiar as estrelas, olhar a linha do mar, o pensamento lá no fundo. Alguém me diz que pode ter componente psicológico aí, e começo a ficar desconfiada de mim mesma. Terei visto coisa que não devia? Ou vai ver é castigo divino por conta daquela vez, na quarta série, que brincávamos de filme de terror e o Ivaldo, que tinha um olho de vidro, me encurralou no corredor e tirou o olho. E eu gritei tanto, tanto, que o menino sumiu dali, talvez cheio de complexos.

Se ver a realidade nunca foi meu forte, parece que estão me cutucando agora para pingar o colírio e encarar. Tento vislumbrar poesia, salpicar charme: vou dar a mão sem olhar, enxergar o tal lado cheio do copo, celebrar a alegria dos sentidos. É pegar esse limão que pintou e fazer uma boa caipirinha, cantarolando alto o samba do Paulinho da Viola: “a vida não é só isso que se vê…” Agora, se um dia a coisa ficar preta de vez, vou é segurar firme na coleira da Zara, a labradora mais fofa do planeta, e que sabe me guiar para as alegrias de muitos instantes.

19 Comentários (+adicionar seu?)

  1. Katia Azevedo
    jul 26, 2011 @ 17:10:21

    Querida Cris, você se supera a cada dia. quando acho que você escreveu o melhor dos textos que já li, lá vem outro para superar o primeiro. Com Zara, caipirinhas ou o que for, seu olhar supera longe o do resto do planeta. enxerga a alma, como ninguém. Te adoro!

    Responder

  2. crisramalho
    jul 26, 2011 @ 20:20:14

    voce que sempre me vê com bons olhos… beijos e obrigada

    Responder

  3. Grego Stoso (rsrsrs)
    jul 29, 2011 @ 01:21:40

    Tenho uma sensação de que pessoas que se mostram inseguras ou ansiosas, sei lá bem qual o termo, escondem dentro de si uma força maior que só conseguem expor para si mesma ou talvez em palavras escritas…
    O que sei, por experiência, é que esse tipo de força é crescente e contagiante, aquilo que alguns chamam de superação mas que, para mim, é mais do que isso.
    Zarinha que se cuide, talvez um dia ela porá uma coleira em determinada pessoa que já se tornou amiga-brava-de-guerra, e pedirá para levá-la a um passeio mesmo que não tão proveitoso como nos tempos em que observava de longe cada poste, e na volta, deitará a seu lado, muito confortada, por saber que tem alguém com quem contar sempre….
    Nos sonhos da Zarinha um pouco de pitadas de paisagens gregas, desde a antiguidade até a bela natureza de hoje….no sorriso de Zarinha e sua escudeira o sonho de uma vida muito bem curtida, sem tanta correria ( ou corridas ) e com mais caipirinhas…porém, de doces morangos, limão será passado contornado.
    Beijos, amiga…

    Responder

  4. Cibele
    jul 29, 2011 @ 01:35:15

    Adorei o texto!

    Responder

  5. Adriana
    jul 31, 2011 @ 15:49:29

    Lindo Cris. Adorei.

    Responder

    • crisramalho
      jul 31, 2011 @ 20:48:13

      Querida, obrigada. Foi por conta desse problema nos olhos que me atrapalhei, acabei não lhe escrevendo, mas agora tudo certo. Ando confessional, esse post e o anterior, Dar a cara pra molhar, tão nessa linha, precisava me soltar… mas agora vou mudar de tom… beijos com amor

      Responder

  6. Cristina Marques
    jul 31, 2011 @ 17:07:49

    Adoro ler seus textos, cheios de sensibilidade e verdade. Parabéns!

    Responder

  7. Maria Lígia Mathias Pagenotto
    ago 02, 2011 @ 03:12:38

    Que texto lindo, Cris! Só podia, hein… poesia até com essas coisas estranhas que nos acontecem na vida… mas o que acontece de fato (agora falando cientificamente, kkk)? Fiquei preocupada… Vejo que vc diz que tá tudo certo.. Bem, espero notícias mais frescas. Enquanto isso, vou relendo este texto delicioso… beijos

    Responder

  8. Lu Cury
    ago 03, 2011 @ 02:22:03

    Cris, que delícia de texto!! uma mini-autobiografia linda!! beijos

    Responder

  9. Luiza
    ago 05, 2011 @ 03:33:34

    caipirinha, veja bem, esses trocadilhos da grande sábia, Ela, vêm assim como vc: em ramalhetes. A gente recebe, encantada, flores coloridas e cheirosas. This is what you are. Beijo

    Luiza

    Responder

  10. stylusleads
    ago 05, 2011 @ 20:39:45

    Criiss,
    (longo supiro)
    Queria eu ter essa visão do mundo.
    Vai superar e trate de pingar esse colírio menina.
    bjocas,
    Flávia

    Responder

  11. valdemir
    ago 24, 2011 @ 23:22:44

    Oi. foi por indicaçao de alguem q nao em lembro. que adicionie vc no meu ícone de favoritos., e agora lendo esse texto fiquei contente e agradecido por adiciona-la..que bacana , voltei no tempo qdo fiz minha cirurgia de miopia.(acho q é isso.) ha 7 anos….que bacana….q pena q minha circunferencia abdominal nao seja igual a sua..rsrsrsrs..abraços…muito bom

    Responder

Deixar mensagem para Maria Lígia Mathias Pagenotto Cancelar resposta