DIÁRIO DA ITÁLIA 9

Pequenas observações da quarentena aqui na Sicília

19/5: Querer saber ou não das coisas. Tem uma história sensacional que o Ziraldo conta de quando era menino e, lá pros lados de Caratinga, onde nasceu, existia um areal que era visto bem de longe, depois de um vale. Os meninos apertavam os olhos para enxergar aquele espaço que parecia infinito, podia ser um oceano. Um dia ele comentou com um amigo sobre o areal, o outro menino teimou: não é um areal, é um rio. “É um areal, todo mundo sabe”. “É um rio”. “Quer apostar?”. Correram até lá, chegaram esbaforidos. Ziraldo, que estava certo, apanhou na mão um punhado de areia e atirou, vitorioso, no amigo. “Olha aqui, ó, areia”. E o menino, incurvável diante da evidência: “’Não me molha, desgraçado”.

Teimosia, a nossa ou a alheia, é velha como o mundo, e bota uma pimenta boa nuns debates, ou naquela conversa de língua enrolada na mesa do bar. No final é capaz dos brigões não cederem, uns podem nunca mais se falar, ou vão sair abraçados cantando Se todos fossem iguais a você. Acontece que os cabeças dura cresceram e se multiplicaram por bilhões, tomaram as redes sociais e daí as ruas, as famílias, o planeta. E feito aqueles zumbis em filme, quando a gente bobeia somos nós a revirar os olhos e perder a capacidade de análise. Não importa o tema. Nem se o argumento vem embalado com elegância, lógica cartesiana, citação de especialista, ou você próprio é o diplomado que estuda o assunto há anos. O interlocutor prefere morrer seco com areia goela abaixo do que aceitar que foi maus, é verdade, não tinha pensado nisso, desta vez estava errado. Não era um rio.

No areal da vez, o coronavírus, com sua intrincada rede de temas, política, economia, cloroquina, abre-ou-fecha-o-comércio, racismo, desigualdade, egoísmo, máscara, não-é-tudo-isso-que-falam, e-se-fosse-alguém-da-sua-família, todas fortes razões para aprendermos a prestar mais atenção nos outros, os rios da discórdia correm cada vez mais caudalosos. Estamos em guerra. Pode ser aqui na Itália, em que a discussão faz parte da alma, ou até na China, onde parece que esqueceram o Confucio e andam estressadíssimos. O Brasil tem agravante disfarçado de jeitinho. Fulano torce o assunto, arruma uma desculpa, chuta o raciocínio como se fosse uma bola. Para fazer você ter vontade de tirar a calça e pisar em cima, tem aquele que ataca, lança um absurdo, e depois, apertado pelos fatos, apenas solta um kkkk e ainda sai comemorando, crente que foi gol.

Comum também é o tipo pavão, que finge conhecimento e fala “veja bem”, prometendo a nova informação que vai mudar tudo. Enrola e não diz nada. É como aquele sujeito de sapato bicolor que na gafieira tirou a Rita, minha antiga cabeleireira, para dançar. Ela ficou assanhadíssima, esse tinha cara de quem sabe o riscado. Ele dançava bem comunzinho, mas no meio da música anunciou, confiante: “Segura!” Ela se aprumou, firmou a coluna, “agora o homem vai me pegar no colo, me rodar, jogar para cima”, e … nada. Dali a pouco ele repetiu: “Se-gu-ra”, a Rita de novo se ajeitou, à espera do grande rodopio. Nada.

Se estão indo embora a diplomacia, as tiradas espirituosas, o interesse pelo diálogo, o que cresce na Internet é o fervor. Na vida muita gente ama, muita gente reza, muita gente batalha. Nas redes todo mundo ama, reza, batalha, paga seus impostos com fervor, e faz questão de deixar isso claro com uma violência inimaginável. E tem a desconfiança. Ah, nada é por acaso. A amiga fofa da adolescência, que toma chá numa caneca estampada com a frase do Ferreira Gullar (Não quero ter razão, quero ser feliz), dispara complexas teorias da conspiração e, se alguém mostra, com o fino da ciência, que aquilo não faz sentido, ela rebate: “Você está chipado, é isso, trabalha para eles (leia-se as organizações que querem dominar o mundo)”.

Eric Hobsbawn, grande historiador inglês, me disse numa entrevista (muito antes das redes sociais) que nunca tantas pessoas estudaram e foram à universidade, mas isso não fez novos gênios ou seres humanos melhores. Não é, de jeito nenhum, o caso de defender a ignorância, mas de pensar que sabedoria é também olhar para outros lados.

Em hebraico existe a lenda da Laila, nome que significa noite, uma espécie de feiticeira, me conta minha amiga Andi. Assim que um óvulo é fecundado aqui na Terra, Laila acende uma luz e entra na barriga da mãe, assoprando todo o conhecimento, todas as comédias e tragédias para o bebê que vai nascer. Na hora do parto, quando o bebê chora, Laila faz shhh! E põe o dedo no lábio do recém nascido. Então ele esquece tudo o que aprendeu no ventre e durante tantos momentos da vida sua lição vai ser voltar para dentro e recordar, e aí que estaria a graça da existência. Parece difícil.

Talvez a gente só precise se lembrar de algo mais simples, qualquer coisa do nosso cotidiano mesmo que gostávamos tanto de fazer, e que por algum motivo, quem sabe teimosia nossa, deixamos para lá. Assim, mais leves com algumas redescobertas, tentamos seguir em frente. Alguns de nós sabem lutar com força, outros no passinho miúdo já sacam tudo, e todos, por bem ou mal, sempre nos ensinam. Porque o mundo continua, os malvados não vão aprender nunca, e a gente espera que pelo menos eles se estrepem no final. Mas nem isso dá para ter certeza.

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