Requisitada

“Tá requisitaaaaada” – era assim, esticando as vogais, a voz rouquinha do cigarro, que a Marta, minha colega de internação no hospital psiquiátrico, reagia toda vez que chegava visita para mim, ou alguém me chamava ao telefone. Eu tinha 19 anos, estava na faculdade de jornalismo, adorava dançar, falava pelos cotovelos, vivia com montes de amigos. Vista assim de fora, acho que eu parecia bem normal, só ria demais, a pressa de não perder a piada, de vez em quando lágrimas demais, talvez indício de que tinha uma alma alvoroçada ali. A Marta, já uma senhora de uns 60 anos, que morava lá com suas camisas coloridas, leveza e raciocínio de criança, sem querer matou a charada. Tudo o que eu queria na vida era ser requisitaaaaaada.

Era também uma razão por eu ter parado ali: a incontrolável vontade de ser aceita.

Lá pelos meus 13, 14 anos que a coisa começou. O corpo de repente sobrando, a dificuldade de ser menina, quando nada cabe, na-da, a pele é curta, tudo é problema, tu-do. Os quilinhos a mais (e eram inhos mesmo, nem realmente gorda eu fui) escorregavam um tanto na barriga, outro pelas coxas, o cérebro e a alma não davam conta do que aparecia no espelho. Doía esquisito. A certeza de ser a criatura mais horrenda do universo. Só podia haver uma solução: emagrecer. Mas comer era bom e, naqueles dias que a escuridão do mundo esmaga a gente, comer era mais do que isso, era essencial. Comer até machucar. Fui tomando remédios, muitos, cada dia mais, para eliminar o peso todo, o peso de ser uma menina que não cabe em nada nem em lugar nenhum. 

Não é que deu certo? A cintura afinou, flutuava de tão levinha, a felicidade de quase sair voando, de me sentir olhada por quem nunca me enxergou antes. Acabaram de inaugurar minha passarela. Chato é que o buraco escuro não sumiu, não sumia nunca, era o poço da Alice, sem saída. Mais comida. Mais remédios. O corpo sofria, falhava de vez em quando, mas jovenzinho, se ajeitava, e emagrecia mais a cada dia. Eu amanhecia chorando e anoitecia dançando, como o brotinho descrito por Paulo Mendes Campos. 

44kg, 1,68m. Era preciso fazer algo. A mãe pedia, tentava entender, chorava. O pai não sabia o que dizer. O médico propôs: você tem de ser internada num hospital – ou médico ou psiquiátrico – para parar com isso. Nem tinha nome a minha condição. Só mais tarde seria batizada como bulimia. Eu, que fazia teatro amador, escrevia, botava fantasia em tudo, pensei que quinze dias na clínica psiquiátrica não me fariam mal, e imagina depois quantas estórias para contar. Os médicos, porém, não ouvem uma menina de 19 anos. Não acreditaram a quantidade de remédios que eu tomava. Tiraram todos de uma vez. Meu corpo inchou tanto que tive edema cerebral. Então eu fui ficando. Fui ficando.

Requisitada eu era. Não tive um dia na clínica sem amigos por perto, mãe e pai, namorado. Também gostava de tentar entender o que se passava com os outros pacientes e se eu era mesmo tão diferente deles. A Marta, que dizia “eu sou pop” e, sem ser capaz de encarar a vida adulta, foi abandonada pela família rica. O Sidney, grandão e bobo de assustar, a gente corria dele. A freira de quem não lembro o nome e tinha o corpo todo queimado por cigarros, gritava sempre, desesperada. A Ramona, olhar perdido, não podia ver um homem que se masturbava na frente de todo mundo. A minha vizinha de quarto que era amarrada na cama para não se cortar. E o elenco clássico de alcoólatras, drogados, esquizofrênicos, as dores profundas que os mais sensíveis não conseguem disfarçar. Muitos desconfiavam que eu era uma espécie de agente dupla para espioná-los, porque eu falava pelos cotovelos, ria, não tinha crises evidentes (sentia vergonha de chorar vendo pessoas com problemas tão graves). É que o meu demônio pessoal não queria confusão, seu plano era ficar bem escondido.

Quando o tédio grudava no ar, eu inventava novela de rádio, show de calouros, qualquer coisa para animar o ambiente. Depois que eu saí, pensei em voltar como voluntária, manter as cantorias, as histórias contadas em roda. Não consegui. Guardei por anos o livro do Oscar Wilde que um paciente me deu com dedicatória apaixonada – um dia ele me viu cortando o bife de outro que estava com a mão engessada e na mesma hora deu um soco na parede do refeitório para quebrar sua própria mão também. Tenho lembranças boas, às vezes bate saudades da Marta, ela deve ter morrido há anos, o hospital fechou, no lugar acho que fizeram um motel. Sarei da bulimia – não na hora, só dois anos mais tarde, quando engravidei e o desejo de ter uma filha saudável me fez outra pessoa. Ser mãe salvou minha vida. 

Nunca mais engordei, papo todas as comidas com gosto, continuo risonha e franca, mas fiquei com sequelas até hoje. O corpo com problemas crônicos de saúde, e, o mais difícil, vira e mexe escorrego feio na imagem que tenho de mim. O que me pesa agora não são os quilos, mas os anos. Encarar a realidade ainda não é o meu forte, e admito, quero é ser requisitaaaada. Não sei explicar o que se passa, deve ser a escuridão que nunca vai embora de vez. O jeito é encher minha labradora de beijos, me declarar para quem gosto e, quando não dá certo, chorar no cantinho. Amadurecer é esquisito, mas um pouco mais de amor só pode fazer bem.

Falar é prata

Olha que maravilha essa história do presidente Calvin Coolidge, que governou os Estados Unidos nos anos 1920 e era conhecido como Silent Cal. Um sujeito atrevido sentou-se ao seu lado num jantar e disse: “Presidente, apostei com meus amigos que vou arrancar mais de duas palavras suas nesta noite”. E ele: “You lost”.

Calar é ouro. Não invejo essa mudez, mas a minha incontinência verbal me trouxe tantos problemas. Acho que desde as minhas primeiras palavras emergia em mim aquela empolgação seguida do “quando vi já tinha falado”. Ou, momento mais dolorido, no auge da alegria, ao contar em detalhes alguma história ex- tra – or- di- na- ria, ouvir de alguém: “Nossa, mas você fala, né?”. E sentir meu rosto em brasa de vergonha, a vontade do chão se abrir, a promessa no meu íntimo que foi a última vez. Até a próxima rodada de conversa, porque continuo contando o que vi, o que li, tão bacana compartilhar a beleza de um instante ou algo gozado que me tocou, que o entusiasmo vai, assim, crescendo. É vero também que adoro escutar os outros, sou boa ouvinte. 

O namorado de uma amiga tagarela como eu dizia que um dia nossas mandíbulas iam cair no meio da conversa e nunca mais voltariam pro lugar. A gente vai abrindo janelas, como páginas no Google, a menção de um tema puxa o próximo – Vestido? Nossa, tenho uma história de vestido, segura um pouco; – Assalto? Menina, tenho uma história de assalto, termina a sua que eu já conto – daí para morrer pela boca é um passo. 

Pode ser a gafe. Pronta para dar meu comentário sincero quando me pedem, na pressa de opinar esqueço, claro, que a palavra é bumerangue. Capaz de decepar o bem estar do ouvinte que está no caminho e voltar, fatal, contra a gente. Muitos empregos na corda bamba por isso, e um curioso twist no roteiro. Um dia, um chefão do jornalismo, a quem eu acabara de ser apresentada no avião, começou a me perguntar sobre coleguinhas famosos e, me sentindo em casa, fui soltando o verbo “ah, esse tem péssima fama”; “essa foi minha chefe, sério, cuidado com ela” para descobrir, na hora, que eram os seus melhores amigos. O homem achou uma graça e me ofereceu um empregão. 

Já o oposto, a ânsia de agradar, também me levou a alguns naufrágios, quase sempre com os meninos. Casei com um homem monossilábico (deve ser lição da Providência Divina), mas tenho certeza que, se eu me vir sozinha outra vez, tudo vai se repetir. Um tal de querer ser gentil, atender os telefonemas, responder as mensagens, ter sempre assunto. Não podia dar certo. Às vezes eu ouvia a intuição – ou copiava amigas mais bem sucedidas – e ficava bem na minha. Aí alguém me dizia: “Ih, boba, você tem de falar o que tá sentindo, chamar o cara para sair, qual o problema?” Ah, é. Lá ia eu. O sujeito saía correndo. Na cena seguinte estou às lágrimas debaixo do cobertor, murmurando entre dentes “nunca mais”.

Falta de timing é dureza: Acredito que homens e mulheres podem ser amigos sem pensar naquilo, e quando faço novo amigo falo à vontade, elogio, comento nos posts, depois me surpreendo se o moço vai achar que estou dando em cima. 

Porque nem escrevendo, quando se tem um pouco mais de tempo para pensar, a coisa melhora. Um simples comentário em post pode ser mal compreendido e lá vem o piano e a bigorna na cabeça da gente. Pelo menos não sou de polemizar com os presentes, e brigar, muito menos. Se os ânimos se incendeiam, jogo em cima o cobertor, peço desculpas, fecho a matraca e vou saindo. Admito, tem vez que não aguento e solto uma última piada, uma ironiazinha como auto-defesa e o interlocutor, eu sei, pode querer me estrangular. Por quê não calei a boca? 

Então depois de ter tentado ficar mais quieta e parado de escrever por uns tempos, tô de novo deitando toda essa falação aqui para me explicar. Mr. Calvin, I lost.

O dia que li o Manual do Peninha

O Otto Lara Resende dizia que entrou no jornalismo como o cachorro entra na igreja: porque a porta estava aberta. Comigo a porta se abriu no dia que li o Manual do Peninha – eu era bem criança e achei que devia ser a profissão mais divertida do mundo. Fiquei com tanta certeza disso – dei uma ensaiada para ser atriz quando me animei com uns aplausos fazendo teatro na adolescência, mas não – que até na hora de cravar o X na escolha da faculdade nem titubeei. Primeira, segunda, terceira opção, só tinha uma: o jornalismo. 

Não foi sempre uma carreira risonha, se bem que já cheguei a chorar de rir em várias entrevistas, como quando o David Cardoso imitou o Mazzaropi para mim, ou o Nereu, do Trio Mocotó, ia contando suas historias inacreditáveis, e Amilcar de Castro me descreveu a dureza que era sair para ganhar mulher ao lado do Guignard. Teve a Dona Madalena, que entrevistei para uma reportagem sobre tipos de mães diferentes, e tão diferente era ela que o editor achou que eu tinha inventado. Até ver sua foto, loiríssima, uma versão baixinha da Elke Maravilha deitada sobre o capô de um Miura. Madalena me recebeu enrolada num lençol (“Num guento esse calor da menopausa”) e, animada diante de ouvinte com caneta e bloquinho, se abriu sobre cada detalhe, como explicaria para a filha que ligou no meio da nossa conversa. “Filha, falei tudo para a jornalista, até do pinto do Clóvis (seu namorado), e ela não para de rir, não sei, acho que vai ter um treco”. 

Foram muitas as horas difíceis. Trabalhando em sucursal, escalada para qualquer emergência, estava me achando a maior gatinha de vestido justo e sandália de saltinho, pronta para entrevistar um diretor de cinema, quando o chefe do plantão me mandou para outra pauta. “Rebelião no Cadeião de Pinheiros, tem de ir já”. “Tá, vou só passar em casa para trocar de roupa”. “Não dá tempo”. Foi bullying dele, claro, porque cheguei lá antes de qualquer repórter, não havia nenhuma outra mulher, e os presos, encarapitados na laje no alto da cadeia, berravam ameaçadores. Desci do carro e eles gritavam “Vem pá cadeia, morena!”. E a vontade de sair correndo? Ainda mais que começou a chover, o vestido grudou no corpo e o juiz encarregado de negociações me olhou com desprezo. “A senhora está atrapalhando tudo”. 

Ruth Escobar me deu dois tapas na bunda, no meio de uma festa, fingindo que era brincadeira, e eu tive de engolir as lágrimas porque a produtora portuguesa tinha razão em subir nas tamancas. Na pressa do fechamento eu havia me confundido e escrito que ela tinha captado 1 milhão de reais em patrocínios e, na verdade, o orçamento total da sua peça é que era de 1 milhão. Deu o maior rolo, ela foi chamada de desonesta – fui obrigada pela minha chefe, Monica Bergamo, a pedir desculpas ao vivo e tomei dois fervendo. A dor da humilhação me fez chorar por dias.

Chorei ouvindo as mães de presos assassinados no massacre do Carandiru e também diante da amorosidade, da delicadeza quase irreal do compositor Guilherme de Brito e sua mulher, a Nena. Chorei quando Ronaldo Fraga me contou sobre a perda da mãe, ele com 6 anos, vendo o pai que colecionava capas de revistas com a Regina Duarte, porque ela tinha o sorriso igual ao da sua mulher que morreu tão jovem. Quantas lágrimas ouvindo broncas injustas dos meus chefes e vendo as injustiças da vida. Como naquele incêndio que cobri na favela de Heliópolis, quando uma mulher dançava no meio da tragédia, ouvindo Michael Jackson num radinho, porque não perdeu seu fogão novinho, mas a vizinha, que tinha lhe roubado o marido, perdeu o fogão, a geladeira e todas as panelas. 

Tanta gente incrível que só pude conhecer porque escolhi a profissão do Peninha, cada turma boa com quem trabalhei, e algumas escolhas muito erradas, umas pessoas e momentos que nem vale lembrar. Não sou saudosista. Guardei uns instantes adoráveis, parceria deliciosa com os melhores fotógrafos e motoristas, grandes amigos para a vida toda e, sim, algumas glórias:
1- Aprendi a pilotar de verdade um aviãozinho para uma matéria, decolei, voei até Ubatuba, furei nuvens, sonho de criança. E, em outra, saltei de pára-quedas.
2- Fiz o Barry White falar para mim, no ouvido, “Cris I love you”, com a-que-la voz!
3- E o dia que recebi 2 dúzias de rosas vermelhas do Jece Valadão, com um cartão onde se lia: “Nunca ninguém escreveu sobre mim com tanta elegância”. Fiquei mal falada na redação, todo mundo achou que troquei mais do que palavras com o maior cafajeste do cinema, mas juro que não. 

Na gangorra da história

Por trás de um cheque vem sempre um comentário. Criei essa frase anos atrás, no tempo do cheque, porque tenho autoridade no assunto. Pode ser uma bronca (“Cris, não é possível”), um conselho (“faz uma planilha”), a censura disfarçada de carinho (“é, também, comprando esses vestidos lindos”), alguma coisa te dizem na hora que você pede uma quantia, por menor que seja. Para aplacar a vergonha, sempre paguei todo mundo rapidinho e ainda oferecia um pouco a mais. E lá se vai o dinheiro de novo dando tchauzinho.

Com intervalos maiores ou menores, a história se repete.Dinheiro é o tema mais cabeludo da minha existência – até mais que homens (e olha que …) – é aquele que brota quando vem o silêncio e a gente se interroga o que fazer da vida. Posso acertar às vezes, me animo, mas como não saio da ignorância? Quase  nunca checo as contas, a toda hora me surpreendo que estou de novo no vermelho, pago o que me pedem, não bufo. E tem meu otimismo: ah, dinheiro vai, dinheiro vem. Não mudei muito desde quando, mal saídos da faculdade, eu e um amigo fomos chamados para um trabalho e já saímos da sala com a riqueza na cabeça. Gastamos com bobagens para celebrar e, claro, a coisa não deu certo e nunca recebemos. 

Não me entendam mal, não sou compradora compulsiva, nem ligada em grifes – sou o clichê da cigarra que quer agradar e se divertir, faz jantar para amigos, compra para casa montes de flores, vou tomar mais um vinho, só hoje vou de táxi, que diferença faz? Uai, como que uns trocados viraram essa dívida? Então, suprema humilhação, mulher crescida, mãe, jornalista que assina artigos na grande imprensa, que sempre trabalhou e fez quase tudo sozinha, vira e mexe, com o rosto quente segurando as lágrimas, corro para pedir socorro para a formiga mais próxima. Olho para as minhas formigas, as amigas organizadas, a minha filha, o marido, olhava para o meu pai, todo mundo tão sensato e precavido. Tento assistir aulas de educação financeira na Internet, agora vai. Ouço “primeira coisa: guardar 30% do seu salário”, melhor dar meia volta.

Por quê conto tudo isso? Para explicar a satisfação que sinto quando vejo essas histórias reais de golpistas que agora estão em séries de TV. Como a Inventando Anna, ou essa The Dropout, sobre a Elizabeth Holmes, a americana que aos 19 anos anunciou uma nova tecnologia para detectar doenças e enganou por 15 anos os maiores homens de negócios dos Estados Unidos, a indústria farmacêutica, e até o Henry Kissinger, um dos sujeitos mais malandros da politica. O que me fascina não é o quanto essas golpistas são inteligentes, nem se a psicanálise explica. Gostoso é saber que empresários tão eficientes, aqueles que ensinam os outros como ganhar milhões, caem nas conversas mais furadas e pagam sem olhar. Tava na cara. 

Pelo menos em golpe eu nunca caí. Inveja minha? Pode ser. Não adianta nada o meu lado, mas ver que os que se acham infalíveis também escorregam dá aquela esperança. A história é gangorra. Ainda posso aprender. Me aguardem que um dia vou ter até poupança.

Uma mulher contra a Máfia

Poucos dias antes de eu pegar o avião para viver em Palermo, na Sicília, era inaugurada no IMS, em São Paulo, uma exposição sensacional de Letizia Battaglia, a mais importante fotógrafa italiana, que registrou a vida palermitana e cenas mafiosas como nenhuma outra pessoa. Meus amigos, claro, já vieram com piadas sobre meu futuro na Cosa Nostra, a vida dupla etc

Eu só achava graça do clichê. Então um dia, depois de me mudar para a vizinha Marsala, estava atrás de um podólogo e fui procurar na Internet alguma referência sobre o gordinho simpático que anunciava seus serviços. O homem tinha acabado de ser preso: mafioso, contrabandista de armas, se disfarçava lixando pés de senhoras e senhores inocentes. 

A Cosa Nostra já teve muito mais glamour e poder, homens de charuto na boca e dirigindo Mercedes pelas ruas estreitas, e hoje é memória grudada em quase todo siciliano. Uma amiga de Palermo me conta, sem alterar a voz, que nos anos 1980 era comum alguém se sentar no bar para aquele aperitivo de fim de tarde e de repente passava um carro com sujeitos metralhando algum cliente. 

Letizia Battaglia fez 87 anos em 5 de março, cabelos Chanel pintados de pink, a língua afiada igual ao seu olhar. Morreria pouco mais de um mês depois, em 13 de abril. São dela as fotos mais icônicas da guerra da Máfia que assolou Palermo nas décadas de 1970 e 80, como a da prisão do capo dei capi, o perigosíssimo Leoluca Bagarella. Letizia quase colou no sujeito, ele numa expressão de meter medo, enquanto era segurado pelos policiais. Ela escapou por pouco: mafiosos a derrubaram no chão, a xingaram, a coisa engrossou. Várias das suas fotos foram anexadas a processos que ajudaram a botar na cadeia chefões até então invencíveis. 

Letizia pensou em desistir depois do atentado de 23 de maio de 1992, quando 300 quilos de explosivos despedaçaram o Fiat branco em que estava o inimigo número um da Máfia, o juiz Giovanni Falcone. Até quem era criança se lembra de largar o brinquedo nesse dia e ver os pais chorando diante da TV. Dois meses depois os mesmos mafiosos mataram o juiz parceiro de Falcone, Paolo Borsellino. Aí ela baixou a câmera. Estava na hora de mudar o foco.

Foi olhar para suas memórias na terapia e encontrou violências tão comuns a mulheres de qualquer ponto do planeta. Um flash aos 10 anos, ela feliz andando de bicicleta por Palermo, quando um ogro abriu o casacão e se masturbou diante dela. Letizia começou, então, a fotografar meninas, sempre sérias, com olhar perdido, inocente, como era o dela antes disso. Mesmo durante seus tempos de fotojornalismo policial, sempre privilegiou os retratos das mulheres. Algumas como ela própria, que aos 16 se casou para fugir da vida engaiolada com os pais e aos 23 já era separada e mãe de três filhas.

Ela criou escola de fotografia, editou revista, ganhou um sem-número de homenagens e prêmios pelo mundo, foi eleita deputada, morou em Paris, voltou a Palermo, fundou um Centro Internacional de Fotografia, metade escola, metade museu. Letizia é de uma geração de fotógrafas corajosas, pioneiras – a mesma das brasileiras Claudia Andujar, Anna Mariani, Nair Benedicto, a anglo-brasileira Maureen Bisilliat, mulheres politizadas que um dia pegavam um jipe e cruzavam a Amazônia, ou o sertão nordestino, no outro cuidavam dos filhos, sempre correndo atrás do lado mais humano da vida. E deram origem a uma longa e linda linhagem de fotógrafas sensacionais hoje.

“Os homens administram mal, governam mal, fazem as guerras, são prepotentes, não crescem, tem pavor das mulheres”, ela disse há um tempinho, mas a frase caberia exatamente hoje, diante do que a gente vê no noticiário. Continua apaixonada (adora homens mais jovens) e otimista, porém: “Certo, gli uomini non sono tutti così”. Também assino embaixo. Se até a invencível Cosa Nostra, de capi circulando em carrões e mandando na Justiça, praticamente desapareceu – e o último chefe que se achava o maioral andava bem em baixa e foi assassinado em 2017 com 2 tiros quando ia de bicicleta à mercearia comprar verduras – vamos manter a esperança que o poder dos homens ogros pode cair um bocado.



Fugir para a ilha

Foto: Antonello Veneri. Pesca a lampara em Sciacca, na Sicília.

Sempre sonhei em morar numa ilha. Viver num pedaço despregado do continente, a porção de terra que preferiu ficar de fora, vendo de longe, lambida pelo mar, soltinha da realidade geográfica. Uma ilha é um lugar para onde se pode fugir. E eu sempre sonhei em fugir. São anos e anos de olho na porta mais próxima, delirando em pegar só uma bolsinha e não voltar nunca mais. Bancar o Gauguin e desembarcar no paraíso clichê, marzão turquesa, coqueiros, o pé fazendo suish, suish na areia de talco. Botar o arroz no fogo e dar uns passos para pescar o resto do jantar. 

Já corri para a porta e escapuli algumas vezes. Desde os meus 5 anos, quando fugi da escola porque não aguentava a professora que gritava. Um dia dei a mão na esquina para o filhinho do mendigo e corremos, sumimos, aventura que durou até sermos reconhecidos pelo meu tio, uns quarteirões adiante. Por quê tem de voltar? Adulta, também nuncaenxerguei lógica em ficar numa situação só para provar que posso enfrentar o problema. “O quê, você vai largar tudo e dar esse gostinho para o chefe grosso/ a má amiga/ o vizinho/ o namorado?”– vou, eles que fiquem com o gostinho, a vitória, o amadurecimento, o que mais quiserem. Nem sempre dava certo, eram só pequenos instantes de libertação, mas ah, que glória.

Teria sido tão fácil sumir de vez. Seria, se eu não tivesse herdado da minha mãe a mania de dar satisfação. Meu sonho de fuga vivia espremido pela ética da culpa, como naquele conto da Dorothy Parker em que duas moças ingênuas que trabalham em escritório sonham com a vida de milionárias ganhando a herança doada por um ricaço excêntrico, mas tinha de ser alguém que morreu bem velhinho, sem sofrer, e sem prejudicar ninguém. Eu só escaparia sem olhar para trás com a certeza que não magoaria nenhuma pessoa, não deixaria meus pais velhinhos, jamais abandonaria minha filha, pagaria todas as contas. 

A providência divina deu o empurrão: meus pais já morreram, a filha, adulta e mais esperta, se mandou antes de mim, e só o último item que demorou um pouco. Scappata, ma non troppo: uma fuga tão certinha, a minha. Dei adeus, chorei com as amigas, nem vim só. Parti com marido e cachorra, sem ideia de como morar ou o que fazer. E se a ilha escolhida não é o paraíso tropical, não deixa de ser um sonho. Mar incrível, mais de dois mil anos de história, um outro idioma, ninguém conhecido por perto, o melhor sorvete da Terra. Tudo tão mais simples. 

Tania, grande amiga que fiz na Sicília, me diz que ela sai pelo mundo não para fugir, e sim para descobrir. Quero os dois.Procurar um sossego, mudar de caminho. Caçar assunto. Desaprender. O privilegio que é poder escolher a beleza e a surpresa como cotidiano. Então agora que já me sinto quase uma siciliana, aquele apego até aos problemas do lugar, escapo de novo. Dei adeus, chorei com as novas amigas, e estou com as malas, a cachorra, o marido, rodando de carro pela Puglia, sem ideia de como morar ou o que fazer. Tô experimentando cair na estrada, e já quero outras ilhas.

Dizem os bem pensantes que não adianta ir longe, bem longe, se esconder, não dá para fugir da gente, das coisas que já dissemos, do tudo que já fizemos ou não conseguimos fazer. A vida vem junto. Não tem importância. Talvez meu sonho seja, mais do que viver numa ilha, ter um pouco o espírito de ilha. Lambida pelo mar, meio despregada da realidade, exposta ao sol, e aberta a quem chegar, pronta para receber os amigos, para ouvir histórias de estrangeiros, de outros fujões. Como é sonho, só quero flutuar, morar nesse azul. Talvez seja melhor um barco. Porque no que a situação aperta, basta levantar âncora e partir para outra. E, quando bater saudade, me esperem aí que mudei de ideia.

Diário da Italia 14

Pequenas observações da vida aqui na Sicília

Granita e a vida sem pressa Os ingleses, com aquele humor de síntese, em que palavra demais é elegância de menos, dizem que o aparente ar esnobe deles é porque depois de engolir feijão doce com salsicha no café da manhã o dia só tende a piorar. A piada é ultrapassada como a fama de que na Inglaterra se come muito mal. Se bem que, invertido, acho que esse raciocínio cabe para os sicilianos: talvez eles sejam tão exagerados porque já acordam se esbaldando, felizes, num sonho de criança: la colazione tradicional, aqui, é um sanduíche de sorvete. 

Não é bem um sorvete: é a granita, que brasileiros distraídos podem comparar com uma raspadinha. A granita é muito mais consistente e cremosa do que uma raspadinha, talvez mais próxima do sorbet. E o sanduíche não é bem um sanduíche. É um brioche grande e macio (com o tuppo, uma bolinha em cima), que vem quentinho e se come mergulhando os pedaços na granita, aos poucos. No final, um espresso. Mas em alguns lugares é servido um sanduichão de sorvete clássico, mesmo, duas bolas dos seus sabores preferidos dentro do brioche doce, e só o tamanho da mordida pro troço caber na boca já acaba com qualquer empáfia. Não é à toa que sicilianos desconhecem a discrição. 

Enquanto o povo lá dos mares cinza e dias curtos se entope de gorduras (no British breakfast ainda tem ovos fritos e bacon) e apavora nutricionistas pelo risco de infarto, a turma aqui do Mediterrâneo começa o dia ensolarado abraçando o diabetes, celebrando literalmente la dolce vita. Um conceito além de acordar com açúcar: significa curtir a vida sem pressa. Dizem os sicilianos que é preciso uns 30 minutos para comer a granita como se deve (até porque é gelada de trincar os dentes). Daí se anuncia a cadência do resto do dia.

O comércio e todos os serviços fecham, todo dia, por 3 horas para almoço – antipasto, primeiro prato, o segundo, a sobremesa, a conversa com vinho – e o cochilo, inclusive em Palermo, a capital, quinta maior cidade da Itália. Uma jornalista palermitana que mora na Bélgica escreveu no jornal que as diferenças entre lá e cá podem ser medidas na hora de comer: “Para nós é um rito sagrado como o futebol de domingo, o cannolo em dia de festa e a missa de Natal”. 

Foi dessa necessidade tão siciliana de conservar os melhores momentos que surgiu a granita. Lá na Idade Média existia uma profissão curiosa, o nivarole, quem recolhia a neve do Etna para guardá-la em buracos no solo, vedados com tijolos, os niviere (espécie de congelador de então). No verão a neve guardada virava um gelo granulado, que as famílias ricas serviam com xarope de fruta. No século 16, aprimoraram as técnicas, resolveram misturar no gelo água, açúcar ou mel, suco de limão ou café, mexer bem e o negócio ficava cremoso. Não mudou quase nada. Hoje as granitas mais clássicas são a de amêndoas, a de limão e a de gelsi (amora escura). Mas tem tantos sabores maravilhosos, como pistache, figo (minha favorita), chocolate… Antonio Cappadonia, um dos sorveteiros mais premiados da Itália, prepara em festivais gastronômicos a granita no estilo medieval, seguindo a filosofia della lentezza (tudo feito len-ta-men-te).

A Sicília obedece um relógio sensorial. Tempo, nessa ilha, é contado num ritmo baiano: para quê correr? Sujeito pára o carro não em fila dupla, mas bem no meio da rua para comprar um doce ou buscar um pacote. Outros motoristas buzinam (a calma de Caymmi eles não têm), o ônibus não pode passar, mas inútil insistir: quando terminar o que estiver fazendo, ele volta e tira o carro. Minha amiga Christianne, pianista paulistana e em tour por Palermo, ficava ansiosa para marcar a hora do ensaio e os músicos nem tchuns: “Siamo al mare”. O professor sai da classe no meio da aula para conversar com outra pessoa e larga os alunos esperando 15 minutos. Burocracias infinitas, o ônibus que um dia passa na hora, no outro não, velhinhos que batem papo por horas nas praças, desvios intermináveis nas estradinhas, parar tudo para ver o mar e a luz mais linda do mundo. Ficar`a toa, sem botar pensamento por cima. Francine Prose, autora norte americana que passou uma temporada por aqui fugindo do frenesi dos EUA depois do 11/9, escreveu em seu livro Odisseia Siciiana que é fácil ser feliz na Sicília, mas requer uma adaptação mais biológica do que cultural: é preciso aprender a viver o tempo de maneira siciliana. Ela se derramou de amor pela ilha. (Como eu).

Francine tá na longa lista de escritores e artistas que vieram para cá e foram ficando, de Goethe a Truman Capote. O último famosão a se derreter pelo jeito de viver siciliano é Mick Jagger, que está há quase um ano vivendo perto de Noto e acaba de gravar um single ali. Dizem que ele veio se esconder da pandemia. Tenho para mim que foi o café da manhã que o segurou: mergulhar o brioche no geladinho da granita, o marzão azul em frente, aquela boca famosa engolindo um sanduíche de sorvete, fácil deixar para trás o breakfast inglês, o Big Ben, e pular nesse outro tempo, doce, tão mais simples. 

Tem de ter autoestima?

Sobre mais essa obrigação que empurram para a gente: a autoconfiança.

Essa aquarela é da Andi Rubinstein, que fez meu mapa da vida me enxergando como um barquinho por aí

Minha melhor amiga aqui na Sicília é a Tania, nascida e criada em Florença, e de alma mais brasileira do que eu. Exuberante, sempre sorridente, dá aulas de samba, já saiu até numa foto enorme do The Guardian em reportagem sobre o Sambódromo, quando desfilou na Salgueiro e o fotógrafo deve ter achado que era uma verissima carioca. Outro dia anunciou seu curso de rebolado nas redes sociais não apenas como uma aula de “samba in piedi”, mas de autoconfiança. “Você vai aprender a realçar sua feminilidade, a acreditar em você e se sentir uma rainha”, ela diz para a câmera. Até acharia legal sacudir os quadris febris, mas essa segunda parte do marketing foi a que colou em mim: a convicção em si própria. Preciso me matricular já.

Sempre me perguntei como é que algumas pessoas, mesmo as não muito lindas, colecionam conquistas como quem junta figurinhas de um álbum. Lembro da amiga que mal terminava um namoro e dizia: “agora vou dar um tempo, quero ficar sozinha, sair com as amigas”, para 15 minutos depois voltar da padaria contando displicente que conheceu um cara legal e marcaram de jantar no sábado. Com gente sedutora a coisa funciona assim. Tem de ser sem esforço, claro, de preferência com algumas incoerências para o outro achar mais sexy. Você conhece alguma: chega na festa e sem abrir a boca transmite, por códigos complexos que nunca aprendi, a mensagem “sou linda, confiante e tenho um segredo”, e dali a segundos pinta um fã na área. 

Já posso ouvir a turma que argumenta o contrário: “ah, mas vai ver os tipos que ela atrai” ou “funciona para sair uma vez, mas que adianta não ter cabeça?”. Forte é a defesa do conteúdo sobre a forma: “para ter uma boa relação o que conta é saber conversar, ser uma boa pessoa”. Hã-hã. Sim, tudo isso conta muitos pontos na dança do acasalamento mas não faz cosquinhas no principal: a autoconfiança. Que nem sempre vem com o charme do papo, o salário alto, o bom hálito e o mestrado. Colágeno e elastina ajudam bem, ôpa, mas felizmente também não determinam o sucesso. Para usar expressões das antigas, tem de confiar no seu taco, ter borogodó. A cereja do bolo é uma pitada de egoísmo. 

Para mim, acreditar em si mesmo é uma sabedoria nata, que desabrocha, nos felizardos, já na adolescência. São os populares da escola, aquele 1% capaz de destruir a autoestima dos 99% restantes e, se a gente bobear, pesar no nosso equilíbrio por anos a fio. Falo mais das mulheres só porque sou uma, mas me solidarizo com homens desajeitados, com LGBTQIA+s, com a imensa fatia do planeta dos que se sentem em dúvida sobre si mesmos. Boa parte da categoria masculina tem a seu favor o treino em ouvir “nãos”, então já vai para a ação sem pensar muito. É o sujeito que pode ser barrigudo, sem atrativos, grosseirão, e canta até a Gisele Bundchen. Como diria o Stanislaw Ponte Preta, “dais vez, ela pode ser tarada”. 

Outra coisa que me intriga: aqueles que no trabalho ou na rua falam duro, em geral meio alto, e confiam que todo mundo corre para obedecer. E os outros obedecem. Ou a pessoa que se acha dona de um nível intelectual mais elevado – às vezes elevado pouquinha coisa – e aproveita para mandar na vida de quem ela acredita que está abaixo. Aquele tipo que não se acha, tem-se certeza.

Vejo que a arte da autoconfiança, que já era difícil de aprender, virou imperativa. Você agora tem obrigação de se achar uma graça, falar o que quer, se impor no emprego. Ôba! Sou a primeira a aplaudir quem usa o minishort com o corpo muito acima do peso, libera o cabelo black power, namora quem quiser, não se prende pelas rugas, a celulite, a idade, os não-pode todos, e que cada um seja feliz. Mas eu achava que ter autoestima era bacana justamente para relaxar das cobranças. Então por que uns que conseguem finalmente amar a si mesmos atiram seu nirvana na nossa cara com aquele tom esquisito de meritocracia? 

Para onde a gente olha tem alguém exibindo equilíbrio, falando “nunca me arrependi”, e dando a ordem: “Você tem de ter autoestima, senão não vai conseguir nada”. 

Tenho de ter já? São anos e anos cultivando minhas inseguranças, tocando a vida na base da tentativa-e-erro, espera aí. Num dia de acerto boto um vestidinho legal, me acho até gatinha, aprendo a cobrar pelo meu trabalho, no outro a crítica me faz sentir ridícula, a última das criaturas, e lá vou eu de novo escada abaixo para meus piores pesadelos da adolescência, essa fase que o Paulo Mendes Campos chamava, tão bem, de tribunal inesperado. Acho que tá na hora de eu fazer o curso da Tania. 

Pensando bem, vou me inspirar na Verônica, travesti maravilhosa que conheci na adolescência, ali pelos lados da av. Ipiranga. Ela era superlativa: corpão, mãozão, unhas gigantes, pés idem, e equilibrava o excesso sussurrando o vozeirão, como se assim diminuísse o impacto da sua presença e ficasse delicada como se imaginava. Um dia ganhou um par de tamancos de saltos altíssimos, dourados, cintilou de felicidade. O problema é que era dois números menor do que o que ela calçava, ficava uma parte do pé para fora. “Tudo bem”, me falou baixinho. “Vou fazendo a linha calcanhar não é pé”. E foi caminhando meio torta pela calçada, mas com o sorriso convicto de quem se sentia uma princesa. Para mim, tornou-se uma. 

Diário da Itália 13

Pequenas observações da vida aqui na Sicília

Foi no inverno passado a primeira vez que visitei Poggioreale Antica, cidadezinha de 1600 destruída por um terremoto em 1968. Felizmente morreram poucas pessoas, deu tempo para a maioria largar o prato de spaghetti na mesa e sair correndo, mas os escombros estão lá, um museu ao aberto dando pistas para a gente imaginar a vida por aqueles lados. Para entrar, é preciso pular um muro ou contornar o que restou de um prédio. Ninguém, nem som de passos, um silêncio de templo – não fosse por uns cães circulando, e a vegetação que brota verde, resistente, no meio dos tijolos, não haveria sinal de vida. Faltam cheiros. Nas poucas ruas, o cenário é de filme de guerra, talvez o pianista do Polanski saia magérrimo detrás de uma casa. 

Fui fazendo fotos com o celular. A imagem que mais me tocou é a de uma cadeira Thonet sem o assento, diante da porta da casa, para mim vestígio de um ritual querido em tantas cidadezinhas do mundo: aquela coisa tão brasileira da conversa de porta aberta na calçada, pode ser na prainha do Nordeste ou no sertão de Minas, uma gente que olha meio de banda, avaliando quem chega. E tão siciliana, como as senhoras e os senhores sentados nos vilarejos que contornam os caminhos das praias, rostos muito enrugados, craquelados como a terra, assistindo o colorido e a barulheira dos turistas que passam aos bandos durante o verão. 

E foi no verão que retornei para mostrar a cidade fantasma a um sobrinho adolescente de férias. Encontramos um senhor falante e sorridente. Conta que sempre volta ali. Memória de juventude, lembranças doídas? “Não, não sou daqui, venho porque me dá paz” – ele sorri e me convida a entrar em algumas casas (como resistir? Desde pequena adoro espiar casa alheia nem que seja pela fresta da rua), ensinando onde pisar para não desabar o que resta. Mostra o teto pintado com afrescos lindos, onde eram os quartos, a cozinha, aponta para o que sobrou de um antigo teatro na rua da frente e, como um guia, me explica o amor pela arte no tempo em que Poggioreale foi fundada. Quando a Sicília era um reino rico e governado pelos espanhóis, os americanos do mundo de então, e os aristocratas copiavam o estilo barroco que despontava nas igrejas e nos palazzos dos primos abonados de Roma. 

Ruínas estão por toda a parte na Itália, claro, e aqui na Sicília se misturam com a natureza deslumbrante e são um pouco o retrato dessa ilha e desse povo: memórias de um passado glorioso, poeira e rachaduras expondo com certa poesia o abandono e a falta de dinheiro, um jeito de viver que resiste firme no cotidiano e corre o risco de extinção. Pastores de ovelhas, camponeses com pequenos sítios, pescadores em barquinhos, mammas e confeiteiros artesanais, prosseguem a sabedoria medieval que alguns filhos se esmeram em resgatar, com orgulho ou por falta de opção, enquanto os que podem dão um jeito de botar o pé em outros mundos. 

É também um pouco o retrato da população que sobreviveu ao terremoto. Foi alojada a 4 km dali, na Poggioreale Nuova, que dá tristeza ainda maior – pela feiúra. Sua modernidade ficou mezzo pós-moderna numas colunas pastiche, mezzoarquitetura comunista dos anos 60, casas caixas-de-cimento, sem nem umas curvinhas poéticas à la Niemeyer para trazer leveza. Os próprios moradores ajudaram a construir a nova cidade, levou 15 anos para ficar pronta, e só então perceberam que faltava algo que nenhum arquiteto – e o Governo italiano convidou os mais famosos para o projeto — se lembrou de anotar no croqui: a identidade. Cadê as várias piazzetas com fontes onde os amigos se encontravam? Os becos com o mercadinho, o sapateiro, a vendinha de queijos? A nova cidade tem ruas feitas para carros e bairros afastados. Passaram o trator e levaram junto o sentido da vida. 

Os velhos moradores agora se sentem no exílio a dez minutos de onde nasceram, alguns não trabalham mais no que faziam, não pertencem a lugar nenhum, feito filho de estrangeiro que em casa cresce falando um idioma e comendo umas comidas e quando sai na rua é tudo diferente. Muitos imigraram de verdade para bem longe: leio que em Sidney, na Austrália, vivem 5 mil pessoas de Poggioreale. 

Gibellina, a cidade vizinha e muito mais atingida pelo terremoto, também foi reconstruída – a 20 km da original – com projeto feio à beça. O Governo italiano convidou artistas para criarem homenagens e o escultor Alberto Burri teve a melhor e mais impactante ideia: cobriu os restos da velha Gibellina de cimento, um monumento forte, belo, parece um labirinto, batizado de O Grande Creto. Lembra memorial do Holocausto e pode ser visto a longa distância da estrada. 

Agora o atual governador da Sicília quer transformar a Poggioreale Antica num centro de treinamento de bombeiros. Em troca da imensa área, promete preservar umas poucas ruínas para a visitação turística organizada. Voluntários que cuidam da memória da cidade se mobilizam contra, assinei a petição deles para isso não acontecer. Não sou daqui mas também não quero que apaguem essa história. Não apenas pelo óbvio e importante registro arqueológico. É que todo mundo precisa de memórias, nem que não sejam as próprias, eu mesma nunca volto ao passado, joguei fora quase todas as fotos de família, não guardo nada. Mas em alguns instantes todas as histórias são um pouco nossas, todas as cidades são um pouco nossas, nos escombros podem ter mundos escondidos de nós mesmos, a cadeira na porta da casa leva a gente para a prainha na Bahia, e de repente aquele lugar que não parece ter nada a ver com você transborda de sentido.

Tô aqui viajando, e penso que a galera a favor só do progresso, da vida prática, não vai achar graça nem serventia nenhuma nesses troços de outros tempos. Então lembro do genial Sergio Porto que foi cobrir uma Copa do Mundo – década de 60, acho – e ele e outros jornalistas deram um giro pela Europa. Ele viu um locutor esportivo escrever num postal para a mulher suas impressões do Velho Mundo: “Ontem fui ver o Coliseu. Não só é menor que o nosso Maracanã, como está inacabado”. 

Diário da Itália 12

Pequenas observações da vida aqui na Sicília

Soube agora pouco: foi numa terça de Carnaval que nasceu o delicioso cannolo, o doce que, junto com a Máfia e a música de Nino Rota, está no pódio dos clichês mais ilustres aqui da Sicília. Não à toa, o trio esteve junto numa cena clássica de O Poderoso Chefão, quando os mafiosos Clemenza e Rocco saem pelos arredores de Nova York para matar Paulie. Rocco dá três tiros, Clemenza – que tinha saído do carro com a desculpa de “take a leak” (a velha “tirar água do joelho”) – observa Paulie morto sobre o volante e solta a frase que ganhou o mundo: “Leave the gun, take the cannoli”. Ao fundo, sobe a música de Rota. A fala foi um improviso do ator Richard Castellano, e Francis Ford Coppola gostou da piadinha – fãs devem se lembrar da cena em que, minutos antes, quando Clemenza saía de casa, sua mulher gritava na porta: “Não esquece de trazer os cannoli!”. Ensaios de especialistas enxergaram nos cannoli um pulo que Coppola quis dar na própria infância, quando seu pai chegava em casa trazendo o doce, e que a frase vem recheada de significados sobre a importância da família para os mafiosos. Será? Eu só acho natural: quem provou um bom cannolo não tem como esquecê-lo nem depois de matar algum sujeito.

Mas tem de ser o legítimo, feito na hora, com a ricota fresquíssima de leite de ovelha. Daí sua origem carnavalesca: é nessa época de fevereiro que as ovelhas mais produzem leite por aqui. É comum eu sair para uma volta um pouco mais para fora do centro e dar de cara com dezenas de ovelhas (pecora, em italiano) nas estradinhas. Os pequenos mercados dos contadini (camponeses) ficam lotados de produtos de pecora, queijos maravilhosos. É o momento de comprar o melhor iogurte que já comi na vida – depois, durante a fase de descanso das ovelhinhas, não tem mais. Como bom carnavalesco, o cannolo surgiu de uma brincadeira: alguém encheu uma banheira de creme de ricota e teve a ideia de enrolar uma massa doce nos canos, encobrindo as torneiras, e lambuzando as mãos dos incautos que fossem buscar água. Descobriram que ficava uma delícia.

Quem seria esse alguém é a graça do negócio: as histórias vão de um sujeito gozador que enrolou o doce em formato fálico mas achou que era abusado demais até pro Carnaval e cortou as pontas para dar uma disfarçada; ou de freiras de um convento de Caltanisseta, no centro da Sicilia, que provavelmente, entre risadinhas, tiveram o mesmo raciocínio. Uma versão diz que eram noviças, na real mulheres que escaparam de um harém (a história da origem do doce é lá pelo ano 1000, quando a Sicilia era dominada pelos árabes) e se esconderam no convento, convertidas ao cristianismo. E ali sublimaram em açúcar uns desejos proibidos, mais ou menos como as freiras portuguesas que inventaram aqueles doces derramados de gemas, caldas e malícia. O doce tem um quê de receita árabe e ganhou o nome por usar açúcar de cana, trazido para a Sicília pelos árabes. O que nos leva a mais uma versão, com menos picardia: o cannolo era enrolado em pedaços de cana, por isso sua forma cilíndrica/ fálica. De todo modo, já acharam textos até de 70 a.C. , do orador romano Cicerone, descrevendo um doce muito parecido com o cannolo. A história é longa.

Fosse em tempos normais, sem restrições de pandemia, terça de Carnaval seria o dia de eu pegar o carro e experimentar os cannoli de Piana degli Albanesi, cidadezinha numa colina ao lado de Palermo, que tem a tradição de festejar o dia com o doce. Ou ir até a linda Sciacca, aqui perto, cidade que adoro e onde provei o melhor cannolo da vida, presente dos meus amigos Antonello Veneri e Salvatore Dimino, que registraram para um documentário o dono e pasticcere do bar La Favola, Salvatore Scaduto (quando vier, anota a dica: La Favola, na Corso Vittorio Emanuele, 234, é imperdível).

Quem já assistiu ao episódio da série Chef`s Table com o chef Corrado Assenza, do Caffè Sicilia, em Noto (que fica do outro lado da ilha), talvez consiga compreender ao menos um teco do significado do cannolo para os sicilianos. É o orgulho de um doce que ganhou justa fama internacional, mas pelo que ele traz de mais genuíno: os ingredientes frescos, a ricota nuvem que só tem aqui, o dedicado trabalho manual (os cannoli são enrolados a mão, um a um), o que vai pela alma dessa gente de uma ilha com tantas lendas e pequenas tradições, o sabor que, feito uma madeleine, é morder e ir parar num dia de festa na família. Vai ver foi isso mesmo que Coppola pensou ao botar o doce no filme. Para mim, brasileirinha, ele não tem cara de carnaval, não. Mas me traz uma alegria real, que se pode tocar e descer goela abaixo. E, quando eu não morar mais aqui e provar um bom cannolo, sei que vai despertar uma amorosa Sicilia que eu tenho para contar.

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